Dá para falar de um livro que não se leu? E se forem dois?
Vou tentar, porque queria falar mais das ideias que eles trazem na superfície do que do conteúdo.
Reluto de novo: será justo nadar em volta e esquecer o mergulho?
Sim, será, desde quando livros são também objetos do marketing feroz e do jornalismo ávido por rótulos.
Os livros que tenho em mente são “Kafka Essencial”, de Modesto Carrone, e “La Bibliothèque Classique Idéale”, de Catherine Lecomte-Lapp (não encontrei edição brasileira).
O primeiro acaba de sair e me provoca incômodo por sua oferta de auto-suficiência. Promete a essência em um terreno em que a descoberta é uma constante, para o leitor, e um imperativo, para a crítica. Kafka mereceria uma nova coletânea por seu valor infinito mas, moldado desse jeito, esse mesmo valor é demarcado: vai até ali. Mas mais do que apontar a contradição do “conceito” (sentido marketing), interessa pensar na relação que ele propõe com o leitor: uma que vai do livro como objeto contábil ao próprio leitor como sujeito nascido para acumular. Deter a essência de Kafka é, sobretudo, não precisar mais de Kafka. Passemos a outro autor, algum que não conste da nossa coleção.
Já uma biblioteca ideal, essa de Lecomte-Lapp, traz uma ideia que pode enganar. Porque é também algo fechada: incluiu dezenas de livros, excluiu centenas de outros.
Mas acredito que “ideal” tem seu valor por encerrar mais propriamente um sentido de sonho e outro de incompletude. O sonho é subjetivo, vem da autora: seu ideal de biblioteca. A incompletude é objetiva: abstrata, a biblioteca ideal é um conjunto de certas obras que não se fecha para outras, não exclui sua participação. É um desejo contido no próprio objeto: ideal que fosse assim, mas pode ser de outro jeito; é ideal também porque não será, nunca, concreto; é a desejar, é a construir, é o processo muito mais do que o resultado.
Portanto, proponho: leiamos Modesto Carone e tudo que ele escreveu sobre Kafka (é seu estudioso). Construamos nossa biblioteca ideal, clássica, moderna, crítica, nacional, policial, de livros para ler no ônibus. O importante é ir além do que sugere a embalagem.
Diego Damasceno escreve semanalmente às terças. E excepcionalmente nesta quinta, substituindo Camilla Costa, que pediu folga para poder assistir à encenação teatral de seu filho na escola.
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