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O ar desta cidade anda muito cinzento, bem mais do que costumava ser. Motivo pelo qual resolvi hoje de manhã deixar meu coupé em casa e vir caminhando até o prédio onde funciona a Redação de O Purgatório, aqui no centro. A cidade, velha cara, pouco me marcou a vista no caminho, exceto pela frase provocante que pude reparar pichada no muro do cemitério do Araçá: “Eu venci a morte”.
Não sei dizer se a redentora sentença sempre esteve lá e eu jamais me havia permitido enxergá-la, encapsulado detrás dos vidros escurecidos de meu carro, ou se nunca esteve, e foi pichada durante a madrugada passada mesmo. O que equivale a dizer que não sei para onde foge minha mirada nos 54 minutos exatos que me consome o sendeiro diário de casa até o trabalho. Não sei se fito tanto o muro do cemitério, a ponto de não conseguir ler o óbvio pichado nele, ou se de fato ignoro, porque demasiado distraído, as anárquicas manchetes que o vulgo rabisca naquela ancestral plataforma de notícias.
Fato é que o sintagma mural do camarada que voltou do Sem-fim dos Mortos reverberou em minha cuca no restante do caminho a pé até a Redação. Cheguei a pensar inclusive em pautar um dos repórteres de O Purgatório para encontrar de qualquer jeito e entrevistar o autor da pérola – afinal, editor bom é editor que chega com uma sugestão bem original, cedo na primeira manhã.
Mas a ideia logo demoveu-se-me do espírito quando deparei com outra pichação, desta vez na fachada aqui de nosso prédio. De ontem para hoje (nesse caso, garanto), algum mequetrefe canetou “REVOLUTION” na nossa fachada, com as letras “e-v-o-l” invertidas e escritas com tinta vermelha – formando a palavra inglesa “love” incrustada na compatriota “revolution”, conforme vocês poderão verificar acima, no canto direito da imagem de cabeçalho aqui do blog.
Mas ora qual! E qual não foi minha indignação! Esses moleques não respeitam mais nada, pensei comigo enquanto subia sozinho no elevador. E resmunguei ainda “Ignorantes!”: sequer saberão que se trata de um recorte ampliado de uma gravura de Gustave Doré, que mostra Dante e o poeta Virgílio, seu guia, entrevendo o vale que há para além do Inferno – e que portanto, ora, pichar uma imagem dessas chega a ser sacrilégio!
Espumando de um desgosto que há tempos não sentia, notei que a Redação, imensa, estava inteira vazia. Que não havia ninguém ao lado da sala de vidro que ocupo – nem dona Orlinda, a copeira, não estava aqui para me ouvir esbufar atrocidades contra os ignotos vandalinhos, entre um e outro café. Que eu estou sozinho e que é de novo domingo.
E então, sem querer quase quase, permiti-me refletir sobre o dizer da pichação – e descobri sua delicadeza. Seria só estrangeirice tola se apenas quisesse remeter a qualquer coisa como “façamos uma revolução através do amor”. Fosse isso, bobagem seria: porque o amor é doce, só exubera entre as quatro paredes da casa da intimidade, não é de chumbo feito as balas que movem os ares públicos das revoluções.
Mais delicado é revolucionar o amar em si. É não perder de vista as letras do amor no meio das palavras fortes, ter olhos para enxergá-lo ainda que rebente em pedra, raro feito a flor da canção. Mas é sobretudo propor a cada um que trate de acender o próprio lume no meio do desconhecido vasto do que vem a ser dentro de si, antes de sair por aí à busca de chama alheia para amornar a própria e fria vaziez escura.
Anima-me a reflexão. Mas sei que não tenho muito mais tempo para revolucionar nada. Afinal, já sou um velho triste que dedicou os domingos todos da vida às querelas tolas do mundo dos jornais.
Resta-me só perguntar se tal revolução não será o segredo do outro pichador, o camarada que diz ter vencido a morte.
Resta-me só perguntar se essa molecada que picha revolução no meu muro sabe do que está falando; mas pouco importa: seja da forma que for, apoio a causa. Sou o próprio muro, pichado.
Ricardo Sangiovanni escreve aos domingos