Sonho de criança é desamarrado.
Eis que o menino, franzino, envergado pela mochila pesada nas costas, enfrentava as manhãs no ponto de ônibus. Cara sonolenta, escola a uma hora e meia. Pra Nazaré, uma viagem. Quando o coletivo branco-amarelo-vermelho dava as caras na esquina da rua asfaltada – sempre cheio de doer – chegava o momento de vestir a armadura da batalha.
A começar pela carona. Alguns motoristas nem titubeavam: bastava um sinal positivo por entre o vidros da porta da frente e o tsssssssssss na pressão liberava a subida. Bom dia, o menino dizia. Entrando pela frente, bom dia mesmo. Quando não era assim, diziam somente que não. Mas havia aqueles que abriam a porta, cruéis de todo, analisavam o moleque e soltavam um “cê num acha que já tá muito grandinho pra entrar pela frente, não?”
Levemos em conta a hipótese de entrada de graça. Daí em diante, a conquista era outra: poder acomodar a mochila pesada – um livro pra cada matéria, coloridos, muitas páginas – no espaço que também necessitava de autorização. Em cima do capô que escondia o motor zuadento, no vão do pára-brisa ou no lado esquerdo do motorista, próximo das alavancas que abriam e fechavam as portas.
– Motô, posso colocar aqui?
A resposta era uma ação. Muitas vezes um menear de cabeça.
Se não se enganava, o motorista mais querido era Seu Joaquim, que ficara fincado na memória por causa da careca lustrada e do pedaço de um palito de dente – um pedaço mesmo, não inteiro – que fazia sambar com destreza por entre os lábios, girando, girando.
Seu Joaquim impassível e o mundo se acabando em aperto. Impávido. E ainda mandava uma parada brusca pouco depois de arrancar do ponto:
– Só vou sair daqui quando conseguir fechar a porta aí do fundo! Quero ninguém pendurado aí não – gritava, olhava pelo retrovisor, tsssssss pra fechar e a galera tomar susto, tssssss pra abrir, até que a massa se amoldava entre a porta traseira e a borboleta.
O moleque pensava, a bunda esquentando no capô do motor estridente (“Posso sentar, motô?”). Via Seu Joaquim, tranquilão, cadeira acolchoada, cheio de mando, espaço de sobra em um ônibus que até pensamento brigava pra arrumar lugar, brincando com o palito de dente. Abandonava, então, sonhos de astronauta, médico, escritor.
Queria ser chamado de “motô”.
Carmezim escreve às quartas-feiras
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