Meu corpo dói profundamente, em todos os músculos mais importantes para a locomoção. Foi uma dor que adquiri ontem, que piorou hoje durante o dia e que terei que superar até amanhã à noite, porque vai doer mais.

Frequento intermitentemente aulas de boxe na academia. Intermitentemente porque, vejam bem, não sou mulher de academia e isso costumava ser algo de que eu me orgulhava. Mas o peso da idade me alcançou e as condições nada ergonômicas dos lugares onde trabalhei cobraram seu preço.

Hoje flerto com o body building com cautela, já que não levar aquilo tão a sério me faz ter a certeza de que ainda estou sã. Podem chamar de preconceito, mas eu chamo de estratégia de sobrevivência em um ambiente onde somente você levanta ínfimos dois quilos no supino vertical.

Mas se com a musculação é só flerte, o boxe já me levou para a cama. Ele me desafia, me faz sentir bem, me chama de mulher.

Não posso dizer que sempre gostei de boxe. Ainda não tenho muito prazer em assistir os combates na TV, não sei identificar as regras. Tampouco posso dizer que tenho coordenação motora, equilíbrio ou quaisquer características necessárias para ter sido uma boa aluna de qualquer esporte de luta. Exceto força. Força eu tenho.

A capoeira, uma das muitas coisas que eu gostava e larguei pelo meio porque não conseguia ser excelente, me ensinou que eu gostava daquele contexto. Da capacidade de bater e do medo de apanhar, dos pés feridos, do corpo dolorido, do respeito dentro da roda.

Naturalmente muitas pessoas já falaram bem melhor sobre a beleza das lutas. Esta semana, encontrei uma ótima entrevista com Katherine Dunn, uma escritora americana de sucesso nos anos 90 que eu não conhecia, falando sobre o seu então livro mais recente, que reunia seus textos sobre boxe.

Talvez eu não precisasse explicar que ela se diz absolutamente contra a violência, como eu também sou. Mas isso é importate porque boxe é mais sobre agressividade do que sobre violência. E a agressividade é uma força poética, porque concentra uma das maiores realidades da natureza humana, a de que somos predadores e é isso o que nos manteve vivos.

É o que Katherine Dunn diz e o que Chuck Palahniuk (e David Fincher) lindamente dizem, na construção do discurso de Clube da Luta, uma história sobre como o esforço moderno para domesticar as nossas emoções e sufocar a nossa agressividade natural está nos tornando, pouco a pouco, menos seres humanos. E sobre como, em algum momento, isso vai explodir da pior maneira possível.

Na entrevista, a escritora admite que, como espécie, nós não somos muito bons em moderação. Frequentemente levamos as nossas forças e necessidades naturais a seus piores extremos. Mesmo assim, ela sustenta – e eu concordo – que a habilidade de acessar a imensa capacidade de agressão que temos é valiosa.

A agressividade é uma força motriz, um poder. É um impulso que nos dá a capacidade de destruir e de defender, de atacar e de proteger. A possibilidade de acessá-la, praticá-la e usá-la dentro de um ambiente controlado por regras de respeito mútuo é o que me atrai no boxe e em outros esportes de luta, que, me parece, têm caído em desuso em relação ao body building das academias. Uma pena.

A musculação tem seu valor, sem dúvida. Minhas costas agradecem o fato de já não sofrerem tanto com a posição em que eu trabalho. Mas sozinha, ela não me ensina tanto sobre os meus limites físicos e emocionais quanto as aulas de boxe, mesmo intermitentes.

A dor da musculação é a recompensa de algo feito diligentemente, por obrigação. A dor do boxe  é o prazer de saber que eu, hominídea que não tenho mais que correr de grandes predadores na savana (se você não contar os motoristas de São Paulo como ameaça), sobrevivi. É domesticado, eu sei. Mas a quem quero enganar? Não sou nenhum Rocky Balboa.

(Aqui a entrevista com Katherine Dunn na íntegra e aqui, os trechos em que ela fala sobre boxe, selecionados.)

Camilla Costa escreve às quintas-feiras.

*Cantem comigo http://www.youtube.com/watch?v=VgSMxY6asoE