Na livraria do Centro Cultural Banco do Brasil em Brasília se vendem frases de escritores impressas de maneira um tanto brega em papel kraft. São vários formatos de papel e fontes diferentes, coloridas, sóbrias, algumas com uma caricatura do autor. A minha é simples, fonte branca e floreios amarelos em cima e embaixo da frase, papel bem vertical.
É uma frase de Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, que diz: “A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”. Achei, por algum tempo, que foi uma compra compulsiva e que o formato em que se apresentava a frase um dia me faria sentir vergonha dela, como quando comprei um ingresso para ver Crepúsculo no cinema.
Mas o papel kraft de Guimarães Rosa foi uma das poucas coisas que eu trouxe para São Paulo pouco depois, quando vim morar aqui. Como seria ainda mais brega colocar meu nome em qualquer formato na porta do meu quarto e – retirante que sou – precisava de algo que o identificasse como minha casa, Guimarães foi parar na referida porta, convidando a todos, diariamente, a ter coragem.
Não posso dizer a vocês, para fins poéticos, que lia a frase todos os dias. Com o passar do tempo, me esquecia que havia algo de relevante escrito no pedaço de papel que marcava a entrada do meu quarto. Poderia ter sido só o meu nome em papel kraft, me guiando para casa quando chegava atordoada demais para me lembrar onde era.
Mas Guimarães esteve olhando por mim. Foi a ele que recorri na angústia do desemprego e ao conseguir um novo emprego desafiador. Foi a sua máxima aprisionada naquela fonte brega que ofereceu a coragem que um namorado precisou para terminar comigo naquele mesmo quarto, decisão pela qual sempre o respeitarei.
Talvez tenha sido a exposição prolongada às palavras e ao papel pardo, mas hoje tenho a firme convicção de que nunca se escreveu coisa mais verdadeira e mais poderosa. Nenhuma das 50 milhares de edições dos Minutos de Sabedoria, juntas, podem conter o que essa frase contém.
Não é o fraseamento, nem a simplicidade poética, nem os neologismos, nem o “storytelling” o que faz de Guimarães Rosa um grande escritor e um grande artista. É o fato de que, ao descrever a menor das lições contida na maior das obviedades, no mais kitsch dos formatos gráficos (excetuando o clipart), ele me deu todas as respostas. Coragem, Camilla. Coragem.
A vida nunca me pediu um talento excepcional, que eu sempre me culpei por não ter para dar. Nem grande inteligência, nem força sobre-humana, nem bom humor inquebrantável, nem senso crítico aguçado, nem. Só coragem.
Não se deixem enganar pela superficialidade dos meus minutos de sabedoria aqui partilhados, amigos. É uma revelação forte, uma revelação estupenda, abissal. Ela reduz a lista de exigências pregada na sua cabeça e traz consigo o alívio e a vertigem de saber que basta ter coragem – e você que se vire para equacionar este alívio e esta vertigem dentro do seu coração.
Meu atual namorado, que ainda não foi inspirado por Guimarães a fazer o mesmo que o outro, me convenceu recentemente a não emoldurar o meu querido e corajoso papel kraft na leva de quadros da nova casa, designer de bom gosto que é. Sei que muitos de vocês concordariam com ele. Mas neste exato momento, sinto informá-los, acabo de decidir pelo contrário.
Camilla Costa escreve às quintas-feiras
8 comentários
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julho 14, 2011 8:04 am às 8:04
Tássia Novaes
Já tinha sido impactante ao ler Grande Sertão Veredas, mas ali, impressa no kraft, naquele lugar, naquela circunstância, confesso que nunca saiu do meu coração.
julho 14, 2011 10:40 am às 10:40
Igor Soriano
Wow wow!! Excelente texto!! Fiquei empolgado a seguir vivendo em Brasília !! Valeu Camilla Costa!
julho 14, 2011 9:39 am às 9:39
sonia
lindo texto! Parabéns!
julho 14, 2011 9:46 am às 9:46
Tatiana Mendonça
amei, cammys! essa frase sempre fica martelando em minha cabeça, mas na maioria das vezes finjo que não escuto. o que é um erro, não é?
julho 14, 2011 11:11 am às 11:11
Ricardo Sangiovanni
Leio esse texto dentro do referido quarto e posso lhes testemunhar que na porta já não há o tal papel kraft; mas a frase nunca desbotará dela.
julho 14, 2011 12:18 pm às 12:18
moreno
talvez a porção brasiliense, que cresceu em meio a krafts com mensagens de gosto duvidoso, tenha nublado a percepção do designer, tornando-o incapaz de diferenciar o kraft iluminado do kraft pegajoso.
julho 14, 2011 12:20 pm às 12:20
Camilla Costa
Verdade. É uma arte, essa diferenciação.
julho 15, 2011 11:33 am às 11:33
maria
eu, que tô precisando tanto de coragem agora, passei o texto inteiro esperando uma foto do kraft brega pra me inspirar. no fim, já nem sei se é preciso. coragem, maria!