Talvez bastasse dizer que, nascida no sertão, chamava-se Das Neves. De prenome, o severino Maria. Não sei como cresceu, como casou, como não teve filhos. Calhou de ser amiga de minha mãe e foi assim que a conheci, sendo eu tão pequena que para lembrar das nossas primeiras vistas preciso das memórias dos outros.
O que sei com certeza, porque depois a visitei muitas vezes, é que sua casa era o único lugar de sossego no mundo. Havia uma mangueira no portão, uma televisão em preto e branco que só ligava depois de muito tempo de espera, uma mesa amarela na copa e redes nos fundos. No quintal, bananeiras, galinhas, dois cágados. Conta-se que com dois anos fugi pra lá, tendo tido antes o cuidado de procurar as sandálias, para não sair descalça pela rua. Depois de muita agonia minha mãe me encontrou deitada na rede, Dadá me balançando. Era assim que eu chamava minha vó emprestada.
Depois me mudei da cidade onde nasci, mas passávamos sempre por lá. Toda vez Dadá reclamava que as idas eram curtas, no que tinha total razão. Quando a gente estava para sair ela apressadamente tentava juntar em sacolas montes de coisas que tínhamos que levar, e não adiantava dizer não precisa, porque ela tomava como ofensa pessoal. E o carro ia abarrotado.
Lembro de uma vez que pude ficar mais tempo e fomos, eu e Dadá, passear na feira. Ela cuidava de mim com medo de que por alguma razão eu fosse quebrar. Na volta me deu um pote muito grande de doce de goiaba, o melhor que já comi em toda vida, contando as passadas e futuras.
Porque ela já era tão velhinha, ficava com medo de que não me reconhecesse, então torcia para não crescer. Sendo o caso claramente impossível, as duas coisas aconteceram. Houve também o dia em que minha mãe, sem muitos meandros, me avisou que Dadá tinha morrido. Assim, distante, sem chance de despedida. Eu sem saber quão triste ficava. Só depois alcancei a extensão da falta que ela me faz. Quando tudo fica muito difícil, finjo que fujo de novo para lá. Ninguém me busca.
*Tatiana Mendonça escreve às sextas
5 comentários
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abril 22, 2011 8:18 am às 8:18
Bete
Muito legal!
São esses anjos bons que dão tanto sentido a nossa existência.
Parabens!
abril 22, 2011 3:42 pm às 15:42
Lívia
Adorei, parabéns :)
Tenho uma “Dadá” e entendo essa sensação de aconchego!
abril 23, 2011 4:25 am às 4:25
Edmundo Wilson
Que lindo texto, Tati. Tem uma presença ficcional, um poder de erguer e sustentar esse mundo de memoria, e ao mesmo tempo, uma proximidade, uma intimidade com você mesmo que transparece, e que por isso nos atinge, sendo também em parte uma crônica.
Não estou categorizando por prazer dos conceitos, não. Eh so para dizer que ele é excelente de varias maneiras.
abril 27, 2011 2:28 pm às 14:28
Andreia Santana
Vó é sempre bom demais, mesmo quando é tomada de empréstimo. O texto é lindo Tati! Já conhecia o talento de repórter, mas me rendo também ao da cronista.
abril 28, 2011 4:08 pm às 16:08
andrea
não me canso de ler suas histórias, de me deliciar com os usos imprevistos do nosso vocabulário e com a sua rebeldia contra as normas da gramática. lindo demais!