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A mão enorme segurou com força o violão, e o velho, que sempre gostava de ser o centro das atenções, anunciou que, embora não devesse, iria tocar uma canção. Todos na sala já sabiam qual música era, menos eu.

– E por que não deveria tocar?

Feliz com a minha pergunta, o velho respondeu com sua voz firme – e alto o suficiente para que a companheira de cinquenta anos escutasse desde a cozinha seu falso sussurro.

– Ela não gosta que eu toco essa canção. Mas vou tocar mesmo assim.

Adotou uma postura elegante e começou a tirar do violão – antigo e mal afinado – um som embaralhado. Os calejados dedos da mão esquerda às vezes pressionavam mais de uma corda ao mesmo tempo, e a mão direita falhava quando buscava um dedilhar mais elaborado. A melodia era pobre e a letra da canção quase banal: falava de uma traição e trazia um pedido para que o passado fosse esquecido. Ainda assim, o espetáculo tinha sua beleza.

Terminada a canção, o velho, visivelmente emocionado, encostou o instrumento na poltrona e deixou a sala. Foi quando fiquei sabendo que a música tinha sido composta por ele há mais de 20 anos, quando ela ficou sabendo da existência de uma amante – relação que durou anos. Sempre que a família conseguia se reunir – o que cada vez era mais raro -, ele tirava o violão empoeirado do armário e fazia aquele pedido público de desculpas.

Era doloroso para ambos, mas ele, por algum motivo, achava importante relembrar aquela história. Ela, no fundo, também gostava daquele ritual, porque depois, com aqueles olhos azuis ainda marejados, ele procurava por ela para pedir perdão e dizer que ela, e somente ela, havia sido a mulher da vida dele.

*Ricardo Viel escreve às segundas

 

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