Assim como as moscas, os coelhos, os estafilococos, os pardais, os bocais de caneta mordidos, os homens, as ervas daninhas e os guarda-chuvas, os asnos também se reproduzem espontaneamente e com perigosa velocidade. Talvez por isso, têm também em comum com os demais a banalidade: a prova é que um burro chega a custar cinquenta míseros centavos na beira da rodovia Rio-Bahia, nos arredores da saudosa Poções – BA. (Uso cotação defasada.)
Pois foi justo um burro o motivo da querela entre o padre Olavo, da paróquia de Santa Bárbara, em Salvador, e o lavrador José, vulgo Zé do Burro, em 1959. Conflito que, conforme relata Dias Gomes (e flagra em vídeo Anselmo Duarte, três anos depois), resultou na morte do agricultor. A tragédia não sai da memória do povo: o cura impediu José de entrar na igreja carregando a cruz de madeira que trouxera no lombo (o dele, não o do burro) por sete léguas. O pobre cumpria penitência em louvor da Santa, que salvara da morte certa o burro Nicolau (seu melhor amigo), atendendo a promessa jurada no terreiro de candomblé de Iansã.
Os argumentos do vigário: a) a promessa fora para Iansã, e não para Santa Bárbara – que o povo diz que são equivalentes, os padres dizem que não são e Deus não diz nada; e b) era para salvar um burro – o que o padre considerou pouco, José e o povo consideraram o bastante e Deus… e Deus?
Tivessem sido lembradas na ocasião, duas evidências da parte do Todo Poderoso teriam decerto solapado a divina intransigência do cônego e provavelmente poupado a memória do povo da trágica recordação:
1) Embora celebre a Páscoa, o pároco esqueceu-se de que foi montado num burro que Jesus Cristo entrou em Jerusalém, conforme flagrou a câmera de Pier Paolo Pasolini em Il vangelo secondo Matteo, em 1964. Não fosse o burro, poucos teriam visto o Filho do Homem agitar o ramo de oliveira, e o sagrado gesto teria sido esquecido, em razão da baixa audiência.
2) Mais grave ainda: o eclesiástico lê a Bíblia, mas esqueceu-se de que o irado Jeová ralhou (e executou sem pena) o infiel Balaão, filho de Beor, porque este espancou seu próprio burro fiel nas três vezes em que o animal fez menção em desviar-se do caminho. Conforme relata o autor desconhecido do Pentateuco (Deus?) no livro de Números, capítulo 22: o burro desviou porque viu o anjo do Senhor, que Balaão não foi capaz de enxergar.
Mas nem o padre, nem o cordelista, nem a prostituta, nem o jornalista, nem os capoeiristas, nem as baianas do acarajé, nem o proxeneta, nem o galego dono da venda e nem a mulher de Zé do Burro lembraram disso. Cercado por todos, José estava sozinho. E a tristeza não sumiu, ao contrário da canção de Ben e de Gil: morreu o homem, ficou o burro.
*Ricardo Sangiovanni escreve aos domingos
Pós-escrito das 13h40: recebi o providencial telefonema de meu tio Ricardo Fagundes, “entendiólogo” em diversos assuntos, entre os quais genética equestre. Me explicou duas coisas: 1) não é o burro, mas o jumento (ou jegue) que custa 50 centavos na beira da Rio-Bahia. O burro, híbrido do jumento com a égua, é, segundo ele, “animal de elite, que chega a custar 20 mil, 30 mil reais” – informação que piora a situação do padre; 2) Jesus Cristo, segundo ele, montava um jumento, e não um burro – informação que não sou capaz de apurar, mas acredito na entendiologia de meu tio. A título de esclarecimento, acrescento mais três informações: 1) mais precisamente, Balaão montava uma jumenta; 2) talvez o burro de Zé do Burro fosse um jumento, já que ele era pobre, e nesse caso o erro original terá sido de Dias Gomes; e 3) substituí o primeiro “burro” do texto por “asno”, porque afinal, embora ambos sejam burros, os burros são estéreis. Em todo caso, quem preferir a insossa verdade em vez da graça poderá assinalar a última opção na enquete abaixo.
10 comentários
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abril 3, 2011 8:42 am às 8:42
Henrique de Melo
O burro somos nozes
abril 3, 2011 11:22 am às 11:22
Bete Fagundes Sangiovanni
Massa Ri! vai pegar mta gente, rsrsrsr!
Adorei! votem certo galera!!
abril 4, 2011 8:48 am às 8:48
Tássia Novaes
tô rindo sozinha aqui.
Meu pai conta uma história, na saudadosa Jequié, quando menino, varou a noite com um tio na porta do cemitério esperando a assombração passar. Tinham que atravessar o local de noite pra chegar a um ponto onde caçavam tatu, preá, passarinho etc. Avistaram a assombração perfeitinha e pararam. Quando amanheceu perceberam que era um jumento imóvel (como é peculiar ao tipo), que com a sombra de uma das lápides, sabe-se lá como, projetava a tal assombração.
abril 4, 2011 8:51 am às 8:51
Ricardo Sangiovanni
Especula-se que o jumento em questão estava vendo o anjo do Senhor.
abril 4, 2011 11:42 am às 11:42
Gustavo Hennemann
Haha, ficou muito bom. Lembrei duma conversa maluca que tive há poucos dias com uma figura aqui em São Paulo.
Segundo Luiz Oliveira, 46, paraibano do interior, ex-boiadeiro e taxista na capital paulista há 24 anos, o tal do burro é um bicho “bão da porra”. Ele é filho do jumento, de preferência o pêga (“aquele brancão com a cruz roxa nas costas”), com a “besta” (égua para os leigos). E se cruzar o “jegue com a jega”? Dá só aquele “tampinha de bingo”, que é “virado em orelha”.
É um doutor ou não é?
abs.
abril 4, 2011 12:01 pm às 12:01
Ricardo Sangiovanni
Mais que um doutor: pelo trejeito da fala, desconfio que se trate de outro “entendiólogo”, como meu tio.
abril 5, 2011 5:36 pm às 17:36
Diego D.
Hummm, cheio de interatividades agora o blog, gostei.
Sobre o texto, acho que não leva a lugar nenhum, e justamente essa é a sua graça. Gostei, mas sei la porque. Minha parte preferida é: e Deus?
abril 5, 2011 7:30 pm às 19:30
Ricardo Sangiovanni
:) se não achar o porquê, então gostou porque é meu camarado, o que já é um porquê melhor do que muitos que andam vendendo por aí.
abril 6, 2011 5:07 pm às 17:07
Eduardo Sarno
Rapaz, a conclusão passou de raspão: o burro, aquele da burrice, não vale nada nem na Rio-Bahia, nem na Rio-Niteroy nem na conexão Líbia-Japão !!
junho 9, 2013 7:02 am às 7:02
Jumentos que passam | O Purgatório
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