Quarta eu cortava pela Mato Grosso para desviar do trânsito quando dei de cara com dois burros no meio da pista.
Aliás, burros não: dois jegues, que burro é animal forte e caro, seria burrice minha achar que eram burros em vez de jumentos aqueles dois bichinhos mirrados, esquálidos.
Não vou alugar vosso tempo com reflexões redundantes sobre o quanto a lerdeza daqueles dois animais inverossímeis escancara o tanto que nossa pressa citadina tem de irracional. Isso seria óbvio, seria facilismo – seria, ademais, inútil, porque segunda-feira lá vamos nós de novo chafurdar na loucura da vida.
Nem vou roubar minutos de vosso domingo descrevendo a fila de carros que atrás do meu e daqueles dois jeguinhos se formou; quanto menos a sinfonia neurastênica de buzinas que começou a zurrar; tampouco o quanto os jumentos não estavam nem aí para a pressa da motoristada, tendo prosseguido devagar feito mulas; menos ainda o tempão que durou aquela cena absurda até que eu conseguisse uma brecha para ultrapassar os bichos (que, apesar de lentos, respeitavam a faixa correta da pista, como muitos motoristas aliás não sabem fazer). Seria aproveitar-me do pitoresco da cena para fabricar alguma literatura ruim.
Tampouco irei inventar que primeiro maldisse os diabos dos jumentos, que os mandei ao inferno, mas que depois me arrependi, e que caí em mim e passei então a pensar que os verdadeiros jumentos éramos nós, nós os motoristas idiotas. Seria falsificar sensações: apesar da pressa, o que senti mesmo ao ver aqueles dois burros foi uma enorme alegria porque, já na quarta, havia encontrado tema para a crônica dominical.
Prefiro então, em vez disso tudo, aproveitar o ensejo para atualizar-lhes de meu rol de referências sobre jumentos e afins – a ver se assim vou acumulando erudição verdadeira sobre pelo menos um objeto de estudo nessa vida.
Pois bem: quando o assunto é jumento – reparem minha fleuma de pesquisador – convém lembrar que:
1) é de mau agouro maldizer o jumento, por tratar-se de animal bíblico. Pois foi no lombo do jumento que Maria Mãe-de-Deus fugiu para ter o menino Jesus, e foi novamente nas costas do bicho que o Cristo entrou em Jerusalém e pôde ser visto por todos no Domingo de Ramos;
2) mas muito antes disso, foi por ter espancado sua jumenta que Balaão foi fulminado por Jeová: o animal desviava o caminho porque seguia um chamado do Senhor; mas Balaão, insensível ao evidente sinal de Deus manifestado na atitude do bicho, sentou-lhe a ripa na jumentinha para que ela tornasse à estrada – depois, chimbou;
3) já se morreu por um jumento: morreu o pobre Zé do Burro, da história de Dias Gomes, quando tentou entrar na igreja de Santa Bárbara para pagar promessa jurada a Iansã, que lhe salvara a vida do bicho. Mas o padre não deixou, porque era promessa para bicho. (Dias, porém, deveria ter batizado o personagem de Zé do Jegue, e não do Burro, porque um homem humilde como Zé dificilmente teria dinheiro para comprar um burro);
4) o animal aparece na obra de Machado de Assis. Machado, em vez do ar superior que têm os cavalos, prefere a mansidão filantropa dos burros, que naquele tempo puxavam as carroças que traziam a água, o carvão, as frutas e hortaliças, as noras, os genros e os bondes. “Dizem que é teimoso. (…) Mas ser teimoso é algum pecado?” (Novamente desconfiamos tratar-se não apenas de burros, mas também de jumentos, haja vista a referência à ‘teimosia’, típica dos segundos);
5) também outro mestre das letras, Olavo Bilac, homenageou os quadrúpedes trabalhadores. Em “Cavalo de Tílburi”, ele destaca as virtudes dos bichos que puxam carroças, eternos esfolados que jamais chegam a ter a vida mansa que levam os cavalos de corrida. (Outra vez: pela despesa que dá um cavalo, supomos que Bilac se referia a burros, e por que não a jumentos, tendo usado a palavra “cavalo” apenas para acentuar a oposição a seus primos ricos.
Como podem perceber, o tema é antigo, é deveras nobre – não é a primeira vez que trato do assunto aqui, e certamente tornarei a ele. Por ora encerro, sempre aberto a quem queira contestar minhas informações ou contribuir com o debate. E sobretudo grato a Deus pela chance – na cidade grande, nesses tempos que correm – de ver jumentos passarem.
Ricardo Sangiovanni escreve aos domingos
1 comentário
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junho 9, 2013 2:51 pm às 14:51
Luiz Sangiovanni
6) Lembrando da história do jegue que comia papel – essa era a predileta que você e Carla pediam para ser contada na hora de dormir.