Ela era do tipo que se encantava pela maquiagem de seus defeitos com fajutas análises psicológicas desses, mesmo sabendo que eu não era psicólogo, que sequer lera um texto de Freud na vida. Ajudava eu nunca tremular a voz quando lhe falava de como sua indecisão crônica era, na verdade, reflexo de uma mente analítica, sempre atenta a pormenores. De como o hábito de falar mal das amigas pelas costas não passava de manifestação de afligimento com o bem-estar delas. Ou de como sua tagarelice egocêntrica revelava o salutar desejo pelo retorno de valores comunitários, reforçados pela intimidade compartilhada, em substituição às superficiais relações contratualistas que aí estão. Saíamos juntos há um mês, e sua disponibilidade constante denunciava um envolvimento possivelmente mais sério do que aquele para o qual eu me dispunha; isso, entretanto, não era um problema: enquanto não encontrasse mulher mais atraente ou interessante, retribuía-lhe a devoção engordando os devaneios sobre ela durante o tempo que tínhamos de matar entre eu a pegar em casa e nós irmos para o motel.
Às vezes, eu me valia da internet na busca de inspiração para minhas atividades como psicanalista amador. Numa dessas navegações, encontrei o jogo das portas, com garantia inconcussa de deslumbramento. O jogo consistia no seguinte exercício de imaginação:
Você está no centro de uma sala oval, e nela há quatro portas. Cada porta tem uma cor: azul, branca, verde e vermelha. Qual você abre primeiro?
Escolhi a azul.
O que você vê aí dentro?
Fechei os olhos e vislumbrei uma sala fria, opaca e sem nenhum objeto, exceto por uma escada dobrável de alumínio, colocada embaixo de um abertura no teto, pela qual entrava a luz do sol, única fonte de luminosidade. Mas tive preguiça de subir na escada, porque sabia que teria que checar as outras portas, como mandava o jogo.
Saí da sala e me dirigi à porta vermelha. Resolvi empenhar-me na criatividade e engenhei um elegante salão, debilmente iluminado por velas presas a candelabros e pela lua cheia, cujo brilho entrava com a permissão de pesadas cortinas vermelhas, que lhe abriam passagem. No centro da sala havia um piano de cauda, no qual um músico, de costas para a porta, dedilhava Für Elise, de Beethoven. Sobre o piano, um homem e uma mulher, nus, faziam sexo ritmado à melodia. A penumbra não permitia que eu afirmasse com certeza que éramos nós, ela e eu, deitados ali, contudo eu reconhecia algo de familiar na dança daqueles corpos. Havia uma poltrona próxima ao piano, a qual me convocava para assistir à performance sendo executada, mas para chegar até ela teria de pisar um chão de brasas, e, de repente, reparei que estava descalço. Fui para outra porta.
Na porta verde dei de cara com uma praia deserta, em cujas areias corriam uma onça pintada, um rotweiller e um cavalo mangalarga marrom. Não era uma perseguição, eles apenas se exercitavam. A brisa que soprava era agradável, limpava o suor provocado pela sala vermelha. Deixei-me estar naquele devaneio por alguns minutos, até me sentir revigorado para continuar o jogo. Por fim, fui à porta branca, mas já sem muito interesse, desejando que aquilo acabasse logo. Atrás da porta branca encontrei apenas um quarto bagunçado. Pela aparência, tratava-se de quarto de rapaz adolescente: havia uma cama de solteiro desfeita; roupas pelo chão; pôsteres de bandas de rock na parede; um criado-mudo com um abajur, um copo d’água e um cinzeiro cheio de bitucas de cigarro; e uma mesinha repleta de papéis e de livros que pareciam ser material pré-vestibular.
A porta azul abre sua personalidade e revela o que pensa de si. A porta branca representa o grau de desenvolvimento de sua espiritualidade. A porta verde diz respeito às suas relações sociais, ao modo como lida com essas. E, finalmente, a porta vermelha induz a pensar em seu lado emocional, passional, amoroso. A ordem em que você abre as portas determina a prioridade que dá às diversas facetas de sua vida. O que você vê em cada uma delas é uma metáfora da imagem que tem de cada um desses âmbitos.
Era perfeito. Agora, tudo de que eu precisava era uma deixa. A qual chegou junto com a comida que pedimos no quarto e depois de comentarmos que a Arquitetura, com efeito, devia aos motéis a invenção dos vestíbulos, colocando uma porta extra entre a alcova e a entrada principal.
— Por falar em porta, você conhece o jogo das portas?
Ela não conhecia. Deixei que o fermento da curiosidade fizesse sua química enquanto ceiávamos. Logo, com sua cabeça sobre meu peito, sorvendo o cheiro de xampu Seda que saltava de seu cocuruto para minhas narinas, eu a guiei pela sala oval com as quatro portas coloridas. Pedi que escolhesse uma delas.
Ela começou com a verde. Ali acontecia uma festa de jardim, onde estavam os amigos e a família. Todos vestiam branco e dançavam uns com os outros uma música agradável, a mesma que eu utilizava como toque de celular, cujo nome ela não se lembrava (The Decemberists — Sons and daughters). Velhos dançavam com crianças, homens dançavam com homens, havia duplas, trios e quartetos na pista de baile. Todos sorriam e estavam contentes, ela também. Ótimo, pensei. Amor à vida (festa), harmonia (branco), valorização dos amigos e da família: já tinha o que queria, mandei-a ir para outra porta. Ela reclamou; disse, manhosa, que eu tivesse paciência, que ela queria curtir mais um pouquinho o reggae, mas acabou passando imediatamente para a porta branca, onde viu só o branco. Não via paredes, e não sentia corrente de ar, o que lhe deixava confusa sobre se estava em lugar aberto ou fechado. Escutava alguma coisa? Nada. Tudo era silêncio. E branco. Havia uma sensação gostosa de calmaria. Excelente! Você, minha querida, praticamente descreveu uma comungação com o divino, com o cosmos, eu lhe planejava dizer mais tarde, quando revelasse a finalidade de todo aquele teatro.
Antes de ir à próxima porta ela até quis saber de antemão aonde o jogo a levaria; foi minha vez de pedir paciência. Enquanto me era revelado que, do outro lado da porta azul, ela encontrara uma loja de brinquedos, eu acariciava sua nuca e segurava o riso, antecipando o momento em que lhe cantaria os primeiros versos de Malandragem — quem sabe eu ainda sou uma garotinha… —, e ela em retribuição ao mimo pularia em cima de mim, esfregando-se em meu colo, perguntando se eu achava que era uma garotinha que estava ali, e então se esfregaria mais forte.
De pau duro, tirei-a do meio de barbies, ursinhos e triciclos e, assim, meio brusco, teletransportei-a para a frente da porta vermelha. Eu mesmo fiz questão de abri-la, num gesto cavalheiresco. Ao fazer isso, quase cedi à tentação de espiar porta adentro. Ansioso, interroguei-a:
— O que você vê? O que você vê?
Ela deslizou a cabeça por meu tórax, voltou os olhos para mim e falou, consternada:
— Nada. Não tem nada aqui dentro.
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Breno Fernandes escreve às terças
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