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Gosto de aviões pela ideia. Em prática, sou daqueles que pouco se levanta, peço chás e ligo com os fones na estação de música infantil por associação milenar entre pureza e salvação; ainda sinto vertigens em decolagens e pelo menos dois sentidos meus perdem a eficiência na descida de pouso. Ao chegar ao solo e me lembrar das paisagens na pequena janela, fico contente por atraso. Neste caso me rendo à máxima de alguns escritores: lembrar é melhor do que viver.

O que poderia admirar nos aviões é óbvio: a possibilidade técnica de superar a gravidade, de ultrapassar espaços, de ser símbolo de nossas capacidades. Como o personagem de A Volta do Mundo em 80 Horas sobrevoando montanhas, declararia espantado: o homem é mesmo admirável. Contudo, é uma frase que não dura muito entre as sensações, por ser abstrata demais e não me comprometer muito, eu que não fabriquei aviões. A questão que me comove de verdade é haver um homem ou uma mulher em particular na cabine, com sentimentos, histórias, um corpo, fadigas, e a missiva de superar e ultrapassar gravidades e espaços, correntes e tempestades, mais outra vez.

Claro, eu também não piloto aviões, mas sinto a pele. Está neste princípio a natureza bruta diante de nossos esforços humanoides, e até lembro um amigo aviador dizer que, dentro de uma nuvem negra, sem qualquer visão senão a dos instrumentos, recorda-se a humildade ancestral quanto às forças que nos cercam. Senti o mesmo quando entrei por muito tempo em uma reserva da Floresta Amazônica, o que fez sentido aí ser um manauense o autor da frase “a natureza ri da cultura”. O piloto do voo de Madri – São Paulo no início deste mês, cercado por um fenômeno raro de turbulência em céu claro na zona equatorial, que não é detectável por aparelhos ou radar, teve de admiti-lo, assim como nós, diante de um sintoma diferente, de um acaso, da falha.

A maior perplexidade, porém, está na decisão emergencial de um piloto. Há uma beleza trágica em ter de escolher e nesta escolha tudo estar implicado. Não há pedido de desculpas, não existem consultas ou precedentes, não adiantam consolos externos ou argumentos de autoridades – só há escolha. Aí se está condenado a ser livre, radicalmente: sou finito e por isso escolho. É só lembrar o caso do Comandante Garcez, que se perdeu em pleno ar num voo da Varig para Belém e conseguiu, sem combustível, aterrissar sobre a floresta. Antes de descer, diz diretamente o que deve realizar até o instante por fim de anunciar o pouso forçado (escute aqui).  E assim, quando às vezes penso na biografia de alguém e o que constituiu seu risco neste mundo, ou que me enxergo ou enxergo outro erguendo um compromisso, me vem simbolicamente a frase decisiva: “Atenção, tripulação, preparar para o pouso forçado”.

Saulo Dourado escuta muito Belchior e escreve, quinzenalmente, às segundas-feiras.

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