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Na canção Medieval II, o eu-lírico de Cazuza conversa com alguém que tenta convencê-lo a abrir o relacionamento: “Você me pede pra ser mais moderno, que culpa eu tenho se é só você que eu quero?”. Com a insistência do outro, e diante da própria paixão imensa, ele grita: “Será que eu sou medieval? Baby, eu me acho um cara tão atual!”. Ainda se defende, com a indicação de um sinal dos tempos: “Na moda da nova idade média, na mídia da novidade média”.

Mas o que os medievais mesmo pensariam da proposta feita pelo interlocutor da música? Encontrei curiosamente neste fim de semana, em um diálogo de Santo Agostinho, O Livre-arbítrio, uma consideração sobre o adultério. Onde mais veríamos tabu, já que este é um dos nossos, há um diálogo concatenado. Trago a passagem, não como qualquer defesa pronta, mas como a incômoda ou surpreendente atualidade de argumentos elaborados por um pensador da Igreja, no século V, quando tentava entender o que consistia um pecado:

“Agostinho – Dize-me, por que consideras o adultério como má ação? Não será porque a lei o proíbe de ser cometido?

Evódio – Por certo que não. Ele não é um mal precisamente por ser proibido pela lei, mas, ao contrário, é proibido pela lei por ser um mal.

Ag. – Pois bem! Mas se alguém insistir junto a nós, exagerando os prazeres do adultério e perguntando-nos por que o julgamos mau e condenável? Seria preciso, na tua opinião, recorrer à autoridade da lei, junto àqueles que desejam não somente crer, mas também entender? (…) Reflete, pois, o quanto puderes, e dize-me por quais motivos.

Ev. – Sei que é um mal porque não quisera ser eu mesmo vítima dele, na pessoa de minha esposa. Ora, quem quer que faça um mal o qual não quer que lhe façam, procede mal.

Ag. – Então! E se a paixão inspirasse a alguém de entregar sua própria esposa a outro, e de aceitar voluntariamente que ela fosse violentada, desejando ele, por sua vez, obter a mesma permissão em relação à esposa do outro? Conforme tua opinião, não faria ele mal nenhum?

Ev. – Ao contrário, ele agiria muito mal.

Ag. – Mas conforme a regra proposta há pouco por ti, esse homem não peca, porque não faz o que não gostaria de suportar. Procura, por conseguinte, outra razão para me convencer de que o adultério é um mal.

Ev. – Parece-me ser o adultério ato mau, porque muitas vezes tenho visto homens serem condenados por esse crime.

Ag. – Ora! Não se tem condenado também, com frequência, a muitos homens, por suas boas ações? [Vários apóstolos, por exemplo], foram condenados por terem confessado a sua fé.

Ev. – Nada encontro para te responder.

Ag. – Talvez seja na paixão que esteja a malícia do adultério. Pois ao procurares o mal num ato exterior visível, caíste em impasse. Para te fazer compreender que a paixão é bem aquilo que é mal no adultério, considera um homem que está impossibilitado de abusar da mulher de seu próximo. Todavia, se for demonstrado, de um modo ou de outro, qual o seu intento e que o teria realizado se o pudesse, segue-se que ele não é menos culpado por aí do que se tivesse sido apanhado em flagrante delito”.

Não retirei nenhum trecho após a desistência de Evódio. A fala que se segue é esta de Agostinho sobre as paixões, que se toma como conclusão do debate e premissa para outro, em que se trata do homicídio, e daí para a origem fundamental dos pecados. Não é fácil, porém, tornar claro um preceito, menos ainda seria aceitar que não se pudesse tentá-lo. Hoje, tempos de aclamadas coragens, aparecem esta ou tantas outras questões como supostas “novidades”, que adiamos ou circulamos com a escusa de que acabaram de chegar.

Saulo Dourado escreve, quinzenalmente, às segundas-feiras.

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