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Ali, no intervalo entre o final das costelas e o começo do quadril, na curva onde cabe a mão de um homem, vez em quando ela põe para tocar uma música triste de amor que roga em língua estrangeira queira ficar ao invés de ir embora sempre / queira ficar / queira ficar. Geralmente de manhãzinha quando o céu está nublado ou no final do dia enquanto lava os pratos do jantar e inevitavelmente nas tardes de terça-feira se estiver sozinha. Tem sempre que esconder mais essa sua esquisitice.
Há um lugar específico para apertar, não dá para ver de longe nem mesmo de perto, mas passando o dedo bem devagar é possível sentir a minúscula seta em alto relevo. Só um dia quando estava voltando do trabalho no vagão apertado do trem a música começou a tocar involuntariamente, mas ela entendeu aquilo como um tipo qualquer de consolo. Ficou um tempo ouvindo de olhos fechados antes de pegar o celular e fingir que o desligava, ao mesmo tempo em que pressionava suavemente a cintura.
Não sabe por que tinha feito isso, acordar e ir até aquela rua suja e fedida sabendo que a qualquer momento podia pegar uma doença e morrer. Durante todo o caminho ouvia a voz de sua mãe dizendo como aquilo era estúpido, perigoso e ilegal, principalmente ilegal, o que de certa forma animava sua vontade cambaleante. Se houvesse um jeito de separar o que devia do que não devia fazer, talvez fosse possível não acertar sempre no erro.
Mas secretamente, intimamente, naquele momento em que está só com as janelas fechadas se olhando no espelho, sente alegria de ter uma distinção. De estar para sempre acompanhada por aquela voz rouca que implora queira ficar, queira ficar, queira ficar.
Tinha medo de acordar um dia e não ter nenhuma lembrança. Não de quem era, um cárcere mais ou menos possível, mas do que tinha vivido. Como se tivesse sempre que voltar à primeira página do mesmo livro. A ideia a desesperava tanto que tremia na hora de molhar as plantas. Por isso a marca da rua suja. Enquanto escutava a música num dia abafado, vendo passar lá embaixo os carros que se moviam em direção a outras vidas, sentiu tanto amor por ela que decidiu tê-la como parte de quem era.
Era seu segredo, embora assim a distinção virasse uma ideia morta. Lá enterrada também estava outra coisa, o pensamento que nunca deixava crescer, transformando-o rapidamente na lista do mercado: banana, maçã, queijo, pão, leite, macarrão para a sopa, sabão em pó.
É imperdoável a indiscrição, mas o que a levou a ser aquela música era o desejo de que encontrasse por acaso o homem que a desejava e a quem amou numa esquina qualquer de uma rua estreita, por acaso, por puro acaso, e que ele parasse um minuto e dissesse Luiza, que coincidência e ela iria fazer uma cara de quem se esforçava para reconhecê-lo, mas cuidando para não prolongá-la. Iam se cumprimentar como conhecidos, qualquer um que estivesse passando pensaria isso, embora saísse com a impressão de que o abraço tinha sido mais demorado que o normal.
Depois de falar da chuva, embora fizesse sol, ele diria – teria que ser ele – você está muito apressada ou podemos tomar um café? E então tudo passaria muito rápido. Ela se esforça, mas não consegue lembrar. Luiza estaria deitada numa cama com lençóis azuis ou verdes ou azuis que rangiam. Quando ele tocasse o espaço entre o final das costelas e o começo do quadril, na curva feita para sua mão de homem, ela apertaria sua mão junto com a dele e a música tocaria, marcando a volta a seu lugar no mundo. Ele ia achar que era só um vizinho melancólico e ela não ia explicar nada, indistinta na sua distinção, porque isso já estava decidido, era melhor assim, tudo feito para ser assim, porque ele não ia entender nunca, não podia entender nunca e nem sabia falar francês.
Tatiana Mendonça escreve às sextas