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Em 2008, fiz um passeio pela borda marroquina do Saara com um guia berbere que, quando não estava proporcionando a turistas esse tipo de experiência, tirava um extra coletando meteoritos caídos no deserto e vendendo-os para estudiosos europeus. Nessa viagem, acampei por uma noite. O céu era a programação do horário nobre. Enquanto assistia à maior incidência de estrelas cadentes que jamais presenciei e aprendia como identificar a Estrela Polar, ocorreu-me perguntar ao guia se ele já havia visto algum OVNI na vida.

— Essas coisas não existem — disse-me em inglês, enfático, para em seguida mencionar algo de que não me lembro precisamente, mas que envolvia a singularidade do homem e Alá. No trato com nossas diferenças culturais ele não fazia o tipo religioso fervoroso, muito pelo contrário, e seu discurso naquele momento não soava como uma inflexão. No entanto, houve qualquer coisa naquela assertividade que me chamou atenção.

Compreendi do que se tratava cinco anos depois, no último feriado, em visita à cidade interiorana da família: Riacho de Santana. Conversando sobre visagens e fantasmagorias com um tio-avô que passara a maior parte de sua existência na roça, perguntei-lhe sobre OVNIs. Ele não sabia do que eu falava, então reformulei a questão: teria ele já visto luzes estranhas no céu, que alternassem entre se mover e estancar ou entre se mover depressa e devagar?

Para minha surpresa, ele disse animado que sim. E disse mais: aquilo era sinal de ouro encantado!

— Como assim ouro encantado, tio?

— Prestenção: sempre que cê vê uma luz dessas, é sinal que no chão debaixo onde ela brilha vai ter ouro. Mas cê não pode cavoucar sem antes falar que nem o padre fala no batismo, senão o ouro sobe…

— Sobe?

— Pro céu. Vai embora. Vira luz de novo. Meu amigo Patrocínio uma vez…

No que ele começou a listar os amigos que já tinham perdido a chance de ficarem ricos por terem se esquecido das tais palavras de batismo, que ele não sabia quais eram. Nunca as decorara, homem de modestas pretensões materiais que é.

Na brecha que tive para intervir, indaguei-lhe se acreditava em ETs — também não sabia o que era isso. Vida inteligente fora da Terra, expliquei. Gente parecida com a gente. Ele assentiu e não disse nada. Foi então que, no silêncio vindo de minha língua e de meu sangue, eu reconheci a natureza do tom que o guia marroquino usara. Era o estranhamento total — tão intenso que era inabsorvível. Provavelmente, o cérebro de meu tio tenha naquele instante feito uso da quota mínima de ATPs, somente para gerar uma rápida sinapse que expulsasse por um ouvido o que entrara pelo outro e que não deixaria nenhum vestígio no percurso.

Há uma lenda antropológica que diz que os ameríndios podem ter ficado dias vendo sem enxergar as naus que primeiro aportariam em seu continente. Só as teriam visto quando essas estavam bem próximas da praia. A explicação é que, não tendo a referência cultural do que aquilo seria ou da possibilidade do feito que a nau encarnava, a mente do nativo não conseguiu processar a imagem por algum tempo. Verdade ou não, sempre gostei dessa história e sempre a associei àquele momento em que se faz uma longa pausa diante do espelho, olhos fixos nos próprios olhos, e de repente — o sublime — se toma consciência plena da vida de modo bruto, anteverbal. Mas pode ser que a lenda das caravelas ajude a entender a cegueira que meu tio e aquele guia têm para a compreensão de Objetos Voadores Não Identificados como supostos discos voadores. Em seu mundo cultural não há espaço para ETs. Suas premissas são outras: são ouro encantado e, possivelmente, estrelas cadentes gigantes.

O que isso diz deles ou de nós? Não sou do tipo que tenta tirar lição única, clara e suscinta dos fatos da vida, meu caro amigo, minha estimada amiga. Limito-me a incorporá-los à minha percepção das coisas, na esperança de que esta se amplie, sempre e sempre. Continuo olhando todas as noites para o palco vazio acima dos prédios. Ainda não perdi a vontade de avistar OVNIs. Mas cada vez mais essa sigla e a expectativa em relação a ela têm menos a ver com naves alienígenas do que com o desejo de dar de frente com Outras Visões Nunca Imaginadas.

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Breno Fernandes escreve às terças

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