Tive um colega de escola, descendente de alemão, que me viu enrolar dois vendedores de rifa por um bom tempo, quando eu simplesmente não queria comprar nenhum número. “Como aqui é difícil se dizer ‘não’ e pronto”, ele observou. Se nós comparamos com os modos de outras culturas, temos o mesmo espanto que ele ao ver o meu esforço. Um jornalista brasileiro foi entrevistar Gore Vidal, logo após o lançamento de um livro de memórias em que o autor mostra detalhes de cruezas e mesquinharias de sua mãe, e perguntou se ele não gostava daquela que o criou. “Não só gosto, como eu a amo!”, surpreendeu-se o escritor. Em nossa terra acalorada, parece que se gostamos ou acreditamos, não podemos ver defeitos, e se rejeitamos, não podemos negar antes de mostrar todos os pontos positivos e as justificativas.
Custei a diminuir os meus receios em rechaçar ou dizer o exato contrário, e apenas com a manutenção da suavidade e do tom amistoso. Sou herdeiro grato das mucamas que popularizaram o diminutivo na língua portuguesa e criaram palavras carinhosas, para poderem expressar-se também sem o risco do tom de insolência e do pedido de um açoite. Não temos mais a ameaça senão do desconforto entre próximos ou da transferência e demissão no trabalho, o que parece nos preocupar proporcionalmente, em um regime diverso. Quando já não dá para prender a divergência em peito solo e precisamos propor o debate, só nos resta fechar os olhos, conter a respiração e dizer: “Desculpe, mas eu vou discordar”. O salvo do “desculpe” para denotar a nossa ciência de um ato tão estridente.
A filiação parece ser um “sim” permanente. Noto em eventos e seminários como o acordo tácito é corroborar com as visões do conjunto. Só se critica o que está fora, sejam editoras nos encontros de escritor, as livrarias nos encontros de editores, o governo nos encontros de livreiros, para citarmos alguns casos. Um amigo meu das artes marciais me contou que é comum em uma academia de determinada tendência, como o kung fu ou o karatê, desprestigiar técnicas de outra. Certa vez, o seu mestre, ao escutá-lo fazer o deboche, rebateu: “Diga isso lá”. Poderíamos até completar, na conta do oriental, que “falar por trás” não seria mau-caratismo, e sim princípio de caráter. A consequência disso é o gênero e o agrupamento para não se precisar dizer nada de frente. É o que nos traz a dificuldade em entender figuras como Jorge Amado, que recebia visitas de ACM e nem por isso era “carlista”. Ao estranharem, ele dizia: “Não sou cego, penso com a minha cabeça”. Ou seja, era ele capaz de diferenciar-se e não se tornar o outro em sua presença, porque sabia discordar.
O caso mais clássico de peleia entre confrades remonta à Grécia Antiga, primórdios da democracia, regime onde pessoas de tendências e grupos particulares precisam estar no mesmo espaço público para deliberarem sobre o coletivo. O conflito assim fica inevitável, e não no sentido da fatalidade, mas da possibilidade de conseguirem dialogar. Platão e Aristóteles, dois filósofos que acompanharam o auge da ágora, eram professor e aluno, sem a redução da hierarquia. Dentro da Academia, engalfinhavam-se por conta das teses platônicas, que levaram anos depois o discípulo a criar as suas próprias. Em um dos seus tratados em que expõe a sua divergência e uma solução para ela, Aristóteles registra uma de suas frases mais famosas, que ecoam naquelas palavras de Gore Vidal: “Sou amigo de Platão, porém mais amigo da verdade”.
Saulo Dourado
3 comentários
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abril 16, 2013 11:28 am às 11:28
Paulo (colega da Ufba)
Muito bom o texto, mas tenho que discordar e, como pede meu jeito, não vou pedir desculpas por isso. Não é tanto por conta da herança do escravizado que se nega com tanto eufemismo aqui no Brasil, nem portanto você negaria por isso, mas muito por conta da herança do colonizador. O servil, na frente do senhor de engenho, obviamente que mentia e omitia pra não ser castigado, claro, mas soube logo maculelar, capoeirar e se proteger nos quilombos (nada disso se parece com um “me desculpe, mas…”). E, no trato interno, não me lembro de nenhum relato em que os escravizados se tratassem com tal hipocrisia que é própria da política européia. O tom de insolência não é uma matiz de matriz africana (me perdoe o trocadilho, sei que você odeia), mas sim portuguesa, européia – e portanto grega, na origem do pensamento político, naquela democracia que já era desde nascença demagoga. Por isso, é interessante quando você coloca a influencia da mucama na sua falta de assertividade na negação, mas tem tanta negação mais firme pra se mirar nos negros trazidos pra Brasil, não acha? Se a opção for eufemizar mesmo geral as suas negações, aconselho então olhar para outras fontes. O que me entristece é ver ainda uma pessoa estudada, que não é duma camada social-econômica marginal, que tem tanto estilo e inteligência precisar de tão frequentes dedos nas palavras. As mucamas diminutaram as palavras, mas por causas maiores. Ao menos maiores que perder o emprego ou a estima dos próximos (estes deveriam estar próximos justamente por tais opiniões).
abril 16, 2013 1:53 pm às 13:53
Saulo Dourado
Oi, Paulo. Gostaria de pegar uma frase sua: “no trato interno, não me lembro de nenhum relato em que os escravizados se tratassem com tal hipocrisia”. Perceba que o seu olhar para a História tem paixões que o atrapalham na análise, pois primeiro, não há como se lembrar de relatos de conversas entre os escravos uma vez que eles não tinham como registrá-los, e segundo, não podemos dividir os europeus e os africanos daquele período em um juízo de valor simples e imputar a uma determinada cultura a origem das maledicências. Tomar isso como pressuposto é, inclusive, retirar das outras culturas o seu caráter complexo e diminui-las em nome de uma defesa. E o que mais havia nas relações entre escravos e senhores era complexidade. Sim, muitos conseguiam refugiar-se em quilombos, fazer levantes, ou mesmo suicidavam-se, assim como outros prestavam favores para serem escalados aos serviços mais brandos da casa-grande, mucamas influenciavam a sinhazinha nas decisões, os filhos na criação, misturavam-se todos sutilmente nos costumes e alguns africanos ajudavam os portugueses até a capturarem outros pela costa do continente. Com esta ampliação de elementos, podemos tentar ir mais longe na busca de compreender o que acontece hoje, em várias tramas sociais. Trouxe um deles para também pensarmos a partir do passado.
Já que pediu minhas fontes, elas são “Casa-Grande & Senzala” e “As Raízes do Brasil”. Gilberto Freyre comenta a suavização da língua portuguesa por parte dos africanos, modos usados em jogos, em dissimulações, em histórias, em conselhos, enfim, nas vivências: “No ambiente relasso da escravidão brasileira, as línguas africanas, sem motivos para subsistirem à parte, em oposição à dos brancos, dissolveram-se nela, enriquecendo-a de expressivos modos de dizer; de toda uma série de palavras deliciosas de pitoresco; agrestes e novas no seu sabor”. Com isso não estou sujeitando, mas mostrando quão forte é a influência da cultura cotidiana dos africanos com os brancos-mestiços. O ambiente, no entanto, se alterou, e podemos assim também adaptar alguns traços,
abril 17, 2013 5:33 pm às 17:33
Paulo (colega da Ufba)
“não há como se lembrar de relatos de conversas entre os escravos uma vez que eles não tinham como registrá-los” Disso se pode dizer análise ou subestima? Nada mais passional que subestimar. Que eu tenha conhecimento, estamos falando de um povo que registrou sim e de diversas formas uma amplitude enorme de suas vivências durante a escravidão. No entanto não me aparece nada suave ao assistir o nego fugido e o que me lembro de suave se chama capoeira. Não consigo, nem diante do mais belo estilo, valorizar o receio pela negação, assim como não posso de nenhum modo relaciona-lo a um povo tão vigorosamente opositor como o de descendência africana. Esse segundo paragrafo, da influência cultural, que vc comentou agora, é geral e não me fez nenhuma relação relevante com o texto publicado, a não ser a citação de fontes que confunde a resignação de quem não se esforça para expressar sua opinião quando ela é contrária com a habilidade justamente de conseguir tê-la exprimida mesmo que despercebidamente.