Noto que já são quase nove horas do dia, e o motoqueiro que semanalmente passa em minha casa para apanhar a crônica e levá-la até a Redação de O Purgatório ainda não passou. Estranho.
Pois tivesse passado, pior: não teria encontrado crônica nenhuma, posto que só agora é que me sento à frente de minha Olivetti para redigi-la.
Só agora é que o faço, quando a edição de hoje já deve estar nas bancas, e o domingo já deve estar circulando com o espaço de minha coluna em branco, ou, se muito, enchido com calhau.
Só agora, quando faltam exatas três horas e um pouco para o próximo concurso público que irei prestar.
Talvez eu preste é para isso mesmo: virar funcionário público e então carimbar papeis ou fabricar alguma burocracia, até ficar velho feito um buldogue, com as bochechas flácidas por cheias de rabugice. Cheias da rabugice venenosa com que acabo, cedo ou tarde, revelando-me insuportável a quem passa muito tempo em meu convívio.
Talvez eu preste mesmo é para viver só, sem perturbar o dia-a-dia de ninguém sadio com minhas verborragias redundantes, com a loquacidade bufa de meus dilemas mundanos, tolices sobre o trabalho que só diz respeito a mim, sobre este ou aquele tipo de financiamento que só eu irei pagar.
Talvez eu seja aquele camarada ótimo para se encontrar de vez em quando, e sentar e dizer e aí tudo bem e falar por algumas horas, depois das quais se diz olha, ele é uma pessoa ótima e tal, mas pra viver junto não daria – é que ele se derrama, se espalha demais, sabe?
Aí me vejo no futuro feito o Braga, numa tarde em Buenos Aires, admirando a felicidade de um casal que passa e pensando que “minha longa tarefa é outra, é não ser infeliz e me proteger e guardar, ser forte dentro de mim, forte, quieto e sereno”. E caminhar no meio da multidão “lentamente, distraído e tranquilo como um boi”.
Ou talvez eu só esteja pensando em tudo isso porque eu e minha amada – por razão que, por insensível ou egoísta, não sou capaz de encontrar – estejamos feito a Rosa e o Cravo, e eu, ainda por cima, tenha-me posto a ler o Velho Braga. Aliás, aquele Braga que você me deu, amor.
Isso: talvez não seja nada, e essa crônica não tenha sentido, e semana que vem já tenha tornado a ser aquele azougue de sempre.
Melhor então parar por aqui. Até porque o motoqueiro acabou de chegar – está aqui em baixo, buzinando feito um louco, cheio da pressa do mundo.
Ricardo Sangiovanni escreve aos domingos
7 comentários
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abril 22, 2012 10:23 am às 10:23
Ricardo Viel
ah, rapaz, me encheu de sentimentos esse teu escrito. enorme abraço, chefia
abril 22, 2012 11:05 am às 11:05
sonia
que pena que o motoqueiro chegou…
que bom que domingo que vem tem mais…
abril 22, 2012 12:19 pm às 12:19
Alex Rolim
Que beleza Sangio, escrita cheia de cronicidade. diria Tite nesse domingo ludopédico. Ah, como eu detesto esses motoqueiros!
abril 22, 2012 10:26 pm às 22:26
Camilla Costa
<3
abril 23, 2012 10:22 am às 10:22
Tatiana Mendonça
que bonito.
abril 23, 2012 3:48 pm às 15:48
Ricardo Sangiovanni
Pessoal, que bom que gostaram :) Boa semana para vocês. Abraços!
abril 25, 2012 2:17 pm às 14:17
Fernanda
Lindo!