É vero que a conversa nem sempre encanta, nem sempre engata, mas reputo ser uma pena que a interação entre as gentes que partilham trechos de itinerários diariamente numa cidade do tamanho de São Paulo seja, no mais das vezes, calada.

Não que esteja defendendo a matraquice a torto e a direito, como a da velhota de cabelos tinturados que passara a viagem inteira açoitando a orelha direita do motorista com amarguras e futebolices empacotadas numa irritante voz roufenha, no ônibus que tomei de casa para o trabalho, pela manhã. Olhe que tenho muito gosto em prosear, mas em prosa ruim não meto palavra.

Só que não há papo malogrado que me abata o espírito, que me roube de todo a esperança de que o próximo poderá valer a pena. E eis que já na metade final de meu périplo empoleirado em uma linha de trem e quatro de metrô, um ônibus de linha e depois um avião entre meu trabalho, na zona sul de São Paulo, e a casa de meus pais, no centro de Salvador, deu-se novamente o milagre da boa prosa.

A fila para entrar no ônibus que nos levaria até Cumbica estava dobrando a rua – tinham caído quatro pingos de chuva e, portanto, o ônibus atrasara. À minha frente, Átila, que do rei huno tinha só mesmo o nome, deixara-se engabelar pela companhia aérea, que lhe enfiara pela guela um overbooking daqueles. Temente a Deus, o pobre diabo escolhera como arma sua índole boa e cordial para enfrentar o gnomo do guichê, e acabou aceitando uma troca de voo que o obrigaria a pernoitar no aeroporto.

Atrás de mim achegou-se Mariana, que ouviu a conversa e exortou o homônimo do huno a deixar aflorar um tantinho assim do espírito bárbaro do “Flagelo de Deus” e argumentar com a companhia aérea com mais energia. Átila, o cordato, retrucou que é, podia ter bradado; mas que não tendo brigado, tendo acatado a penitência, ganhava lá seus pontinhos no céu com a turma do Divino. Reapareceram os incisivos levemente tortos do sorriso branco muito branco de Mariana, arremate do rosto redondo de franja que lhe conferiam charme infantil.

Prosseguiu então o divertido Átila, o convertido. Disse que preferira aceitar o desígnio divino do overbooking e tomar o próximo voo mesmo: e se aquele em que ele não embarcou caísse? , perguntou, recordando que o irmão escapara do acidente da TAM em Congonhas, em 2007, por um erro na hora de confirmar a compra da passagem pela internet. – E se o voo de amanhã de manhã cair? , perguntei. Átila corou. Mariana, novamente, se riu.

Habituê de aeroporto, Átila contou que certa vez viajou na poltrona do meio, encolhido entre os brações de outros dois gordotes, que se apressaram em ocupar os braços das poltronas, imprensando a bonânima do moço. Ponderei que o real malfeitor era mesmo o passageiro da poltrona do corredor, que afinal não disputa com ninguém ao menos uma das abas de sua poltrona. Átila preferiu não ir adiante na polêmica: prefere mesmo é a Azul, que tem só duas, não tem esse negócio de poltrona do meio.

O papo continuou rendendo, o ônibus chegou ao aeroporto. Como resistisse a aceitar que a perda terrível de meus novos amigos era iminente, convidei-os a encontrarmo-nos depois que cada um fizesse o check-in, para tomar um café antes do embarque. Mas é São Paulo, e na multidão dispersamo-nos sem despedida mesmo.

Só, me restou embarcar. Meu bilhete da TAM marcava o assento 23 B: poltrona do meio. Dos lados, dois rechonchudos vizinhos. Ironia do destino, diria Átila; ou só piada da TAM mesmo, diria Mariana. Fato é que, tendo sido um dos primeiros a embarcar, acorri a retesar meu braço direito no braço da poltrona, só pra garantir…

É que a prosa, quando engata, ensina sempre uma coisinha ou outra.

Ricardo Sangiovanni escreve aos domingos