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O senhor gosta de Belchior?

Tava tocando Belchior na rádio, nunca que me esqueço – eu gosto, que sou romântico, não vou mentir. Mas quando aquele moleque sem quase nem barba anunciou o assalto do banco do carona, me perdi da distração: achei que fosse me arrepender margamente do dia em que resolvi inventar de virar motorista – até outro dia eu dirigia caminhão.

Cheguei por uns minutos a pensar que teria sido melhor é ter passado a vida inteira continuando a atravessar aquela Faria Lima todo dia de manhã, trocar de ônibus pra ir servir de garçom naquele boteco ali que tem depois da Tabapuã, feito eu já fazia há mais de ano. Calor da zorra dentro daqueles busão, cada engarrafamento que não acabava mais.

A Faria Lima, o senhor sabe, tem duas mãos. Só tem que um dia eu me apercebi de que fila de carro de manhã só tinha era no rumo da zona sul – o senhor repare. É tanto que eu todo dia atravessava a outra mão, que dá pra zona oeste, sem nem importar de olhar se tava farol vermelho ou verde, de tanto que não passava carro quase. Embicava nela no passo que descia do ônibus, meio dormido do jeito que vinha, nem olhava pros lados, um sacrifício danado que era ir trabalhar todo dia naquele bar, vou te contar, o dia inteirinho escutando merda d’uns gerente filha das puta que não sabia nem fazer um “o” com um copo, uns hom’ignorante que só a peste, ruína do que sobra de delicado na gente.

Só guentei um tempinho naquele trampo porque todo dia, quando eu olhava pra a pista vazia derretendo toda no horizonte, da canícula que fazia no rumo daquela zona oeste, juro por Deus: esse negócio de calor com oeste me fazia lembrar era de filme de caubói. Na rua podia estar fazendo a barulheira que fosse: dentro de minha cabeça danava a tocar aquela musiquinha que toca nos bangue-bangue quando o Clint aparece de poncho, a cara toda suada suja, mascando uma ponta de cigarro debaixo da aba do chapéu, tá lembrado? Ê’s cabra bom! E aí era como eu, atravessando a rua ali no Largo da Batata, virasse o próprio Clint, máscara de macho, pronto pra aguentar de tudo – até tromba de patrão – e ainda acertar o tiro.

Decidi largar mão daquele trabalho no dia que cansei, que dei por mim que a cidade é cheia desse jeito não é por falta de espaço: o caso é que todo mundo tá indo sempre pro diabo do mesmo lado. Pois tava lá a mão que ia pra a zona oeste, vazia todo santo dia, que não me deixava mentir. Dali em diante, foi o tempo de juntar o dinheiro pra dar de entrada no caminhão e picar a mula. Dito certo – fui pro outro lado.

Depois fiquei na estrada, rodei muitos anos. Graças a Deus nunca tinha me acontecido nada. Até o dia do assalto que tava contando ao senhor.

Eu andava meio tristão, tinha ficado sabendo que uma namorada que eu tinha ali perto da região de Alcobaça tinha ido s’embora sem deixar nem rastro. Dei então de dar carona pro tal do sujeito, vai que pelo menos distraía com a prosa. Vim contando história no caminho, ele também – me disse que a família era de Livramento, que trabalhava numa fábrica de dobradiça e não-sei-mais-o-quê – , rapazinho tranquilo, com cara de distinto assim feito o senhor. Mas aí ele disse bem assim “tio, agora a casa caiu”. Nem precisou mostrar o ferro: embolsou tudo que eu tinha no carro, até o pagamento da carga, 47 mil que o miserável do cliente tinha me inventado de me dar em dinheiro naquele dia. Tinha seguro de nada.

Já tinha me contentado em perder tudo. Paciência. Me mandou desligar o rádio e calar a boca, disse que encostasse no próximo posto, que ele ia descer. Entrei no tal posto e espiei que no fundo, detrás da borracharia, tavam uns meganhas abastecendo umas quatro viaturas. Notei que o moleque tava olhando para o outro lado nessa hora, e foi lá mesmo que eu encostei. Enfiei a mão no bolso direito da japona.

Aí, como eu tava dizendo pro senhor, na hora que tava me lembrando daquele dia quente em que tinha decidido virar caminhoneiro, já prestes a me arrepender, começou a tocar em minha cabeça a danada da musiquinha. E aí me lembrei do Clint. Botei máscara de macho e, quando o moleque já fazia o gesto de descer da boleia, virei pra ele e disse: “É você descer desse caminhão e eu te aponto pros PM aqui do lado.” Ele branqueou. Eu não: “Esvazia a sacola agora. Devolve tudo, ô cagão. E mais esse relógio aí, e o que você já tinha antes. Essa corrente é de ouro?”

Recuperei meu dinheiro e ainda assaltei ele, mas vou dizer uma coisa pro senhor: as pernas me tremiam feito vara verde. Quando liguei o rádio de novo ainda tava tocando Belchior: Paralelas. Ainda prestava pr’alguma coisa mas, como Clint, já estava velho demais pra continuar naquela vida. Tem já dois anos que voltei para a cidade, mas olhe: gosto de dirigir táxi não. É sempre esse trânsito, sempre esse pessoal indo tudo pro mesmo lugar.

Vinte e dois e cinquenta. Vinte resolve. Bom descanso pro senhor.

Ricardo Sangiovanni escreve aos domingos e excepcionalmente hoje. O titular das terças, Diego Damasceno, volta na próxima semana.

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