Mais até do que uma companhia cálida, doce e cheirosa debaixo de um cobertor gostoso e grosso, o que o frio que faz aqui nesta noite pede mesmo é conhaque. Na falta, à guisa de arremedo, saquei uma rolha de vinho. E procurei a lua nova no céu. E então já posso dizer (besta, querendo-me poeta) o que não devia: esse vinho, essa lua no céu, me botam comovido feito o diabo.

E assim comovido recordo a sensação análoga que experimentei há dois dias ao folhear, por acaso, Deslembrar, delicada fábula de Luciano Pontes sobre a importância das lacunas de que toda Lembrança precisa para seguir levando a vida. Falo em “deslembrar”, jamais em “esquecer” – porque, afinal, “a única coisa que não existe é o esquecimento”, já diria o velho Borges. Deslembrar então seria um semi-esquecer, um deixar ir-e-vir das memórias – das boas, das ruins, das todas. Um liberar o respiro preso no que-já-foi para o que-está-sendo agora e para o que-pode-vir-a-ser. Um primo-irmão do sonhar, enfim.

Lembrança, nesse volume disfarçado de livro infantil, é nome de uma menina. Veste vestidinho vermelho e tem um par de asas de libélula – tudo brilho da ilustração de Rosinha. “Lembrança, menina, quem não tem? Eu lembro da minha e espero que você também” – é como o livro termina.

Termina dizendo justamente o que gostaria de dizer aos amores que já perdi.

A esse propósito, por sinal, recordo-me de que, sim, amores já perdi alguns; mas que jamais perdi um amigo sequer. O que me faz pensar que sou (que seríamos, essa espécie) mais talhado(s) para a amizade do que para o amor. E que o amor – oh, judiado vocabulinho! – necessitará de sufixos para significar algo que preste. E que, nesse caso, “amoramigo” seria uma eventual sufixação do dito-nobre sentimento que ainda desejo, com sorte um dia, poder experimentar por período largo e generoso da vida.

Falo de uma sorte de amor quase infantil. Talvez daquele jeitinho cândido como se amaram as duas crianças – um molequinho franzino (eu, presumo) e uma menininha das pernas grossas – de um sonho que anotei nas páginas finais em branco de um Guimarães que andava lendo. Tinham 5 (talvez 4 ou 3, quem sabe 2) aninhos e corriam imunes a tudo, juntos, ele atrás dela, rindo às gargalhadas, por sobre um céu azul escuro salpicado de estrelinhas sob seus pés.

E então me lembro do dia em que conheci Helena, encantadora garota búlgara que sentou ao meu lado num voo sem luxo de Inglaterra para Espanha. Loirinha, uns olhos azuis clarinhos de tão alegres. Macacão jeans, camisa branca, sorrisos e tudo, cheia de graça. Charmosa que só ela. Não falava português nem inglês – tampouco eu o búlgaro. Nem precisou: privados da fala, partimos para outras formas de comunicação. Pus a ponta de meu indicador sobre meu nariz, e ela a do dela no dela também. E movi meu dedo até a bochecha, ela o dela também. As mãos sobre os joelhos, e a moça seguia o mesmo gesto. Cobria a cara com as duas mãos; tocava o cabelo; estourava as bochechas com as palmas… ela sempre também.

Foi uma interação tão espontânea, uma alegria grata e mútua, gratuita – tão franca e doce que, confesso, me apaixonei. Fazer o quê, se era tão fácil estar ao lado dela? E assim, sentindo-me menino, por um minuto ou dois no final do voo, pensei até que Helena pudesse ser a minha garota dos sonhos…

Mas aí me ocorreu que eu já tinha 27 anos, e ela, só 2 – informara-me a acompanhante, sua mãe. De modo que, evidentemente, não cultivei maiores esperanças.

Fato é que, dessa intensa e brevíssima história, conservo a imagem de uma espontaneidade amiga e simples que um dia ainda queria utilizar na alquimia de um eventual futuro amor – elixir do tal “amoramigo”?

Vai saber. Sei é que Helena, tão pequena, decerto já me terá esquecido – pudera. Não sem deixar, em meu coração mais vasto que o mundo, uma boa – uma inesquecível, uma deslembrável – lembrança.

Ricardo Sangiovanni escreve aos domingos