Escreveu-me dia desses meu vizinho das segundas aqui no blog, Ricardo Viel, contando novidades. Uma delas era seu ingresso numa academia de ginástica, para praticar (creiam-me) musculação. Na carta, ele brincava: “Daqui até ir para a Espanha, vou virar um Arnold”.
“Arnoldo e Suas Negas”, respondi-lhe, em clara (em infame) alusão ao ator e ex-governador da Califórnia, Arnold Schawrzenegger. E emendei: “como pontifica meu pai piadista (que faz o tipo original). Devo tudo ao meu velho pai.” Uma verdade.
Porque não conheço especialista maior do que meu pai na arte de inventar piadinhas infames desse gênero. E o faz sem a menor vergonha, em público, na frente de toda a família. Quando a inspiração lhe foge, apela a repetir (por vezes à exaustão) suas antigas gracinhas de bolso, só mesmo para quebrar o silêncio: “Não confunda Zé Carroceiro com Zeca Roceiro.” E todos se riem – se não da piada, da coragem que demonstra ao repeti-la. Inclusive minha mãe, com quem é casado há lá uns 30 anos. Parêntese: tenho para mim que achar graça numa pessoa com quem se está há tanto tempo é sinal sincero de amor.
Quando, então, afirmo que “devo tudo a meu pai”, juro que embuto no clichê surrado uma reflexão honesta. Porque, com essa fala, quero dizer que mora justamente nessa delicada capacidade de brincar com os sons das palavras a origem não apenas de meu próprio estilo de enxergar piadas nas coisas, mas também dos trocadilhos que às vezes arrisco transformar em versos – e, no limite, a origem de minha crença de que a boa prosa narrativa não será mais do que um entrelace equilibrado de sonoridade e sentido.
Mas tem mais que isso. Trocar as sílabas das palavras, fundi-las umas nas outras criando novas, brincar de dar novos sentidos a palavras estrangeiras, lembrar que em toda descabelada há uma bela, tudo isso é sinal de saúde. Falo de saúde psíquica: afinal, que mais são do que brincadeiras de nosso inconsciente atos falhos como “preijo e quesunto”? Psicanalistas talvez me desmintam, mas não arredo pé da crença de que a facilidade de deixar chegar ao nível da consciência esse tipo de “mecânica da gracinha infame” é sinal de que a relação interna entre consciente e inconsciente, ou entre imaginário e simbólico, ou entre espontaneidade e norma, é bem resolvida, saudável. Ou seja: grosso modo, o piadista é um adulto cujo lado criança tem trânsito livre e anda por aí, aprontando molequeiras. E a molequeira, amigos, é o motor de uma (de toda) língua.
Nisso, sou como meu pai. Nisso em em outros tantos traços dos quais me orgulho em igual medida, sejam virtudes, sejam defeitos: é a porção fundadora do que me cabe ser nessa vida, porção essa que nós todos temos mais é que reconhecer, aceitar e, com sorte, amar.
N’outra coisa que também sou como meu pai é nisso de escrever para um blog. Ele, em seu Blog do Sangiovanni, conta, exibindo um dom da boa memória que admiro tanto quanto invejo e com a alegria que lhe é própria, os causos que viveu nas andanças que já fez por aí.
Deixo-lhes, então, com uma de suas anedotas – uma das muitas em que ele se recorda de seu pai, meu saudoso avô – neste dia dos pais.
Ricardo Sangiovanni escreve aos domingos
Medo do Escuro
(Luiz Sangiovanni)
Estava aqui, pensando naquela profunda escuridão de Poções, quando o motor/gerador dava defeito. De repente, a luz apagava. Esperávamos por horas e nada. Depois das dez, então, seu Nicola Leto não ia mais tomar providências – o conserto ficava para o dia seguinte.
Restava a opção de ir dormir. Apagava o candeeiro e segurava uma vela para iluminar o caminho da cama. Antes, via um vulto vindo do corredor do banheiro em direção à sala e, depois, para o quarto. Era meu pai, com uma lanterna em uma das mãos e a outra ocupada com um portátil vaso sanitário – o penico, mais comumente chamado de “urinó”.
Com as mãos ocupadas, ele não poderia dar a benção da boa noite e apenas respondia: Dio ti benedica, va te curca presto! (Deus te abençõe, vá se deitar cedo!) num sotaque carregado do dialeto italiano.
Ainda garoto, o medo de escuro me pelava. Quando alguém reclamava de dor de barriga, eu caía fora. Significava que me mandaria pegar erva cidreira no quintal [escuro] do fundo. Tinha receio que uma mão de defunto me agarrasse – saía picado, correndo, assim eu poderia chegar primeiro que a alma.
Como a casa era imensa, fria, e o banheiro ficava no final do corredor, a opção mais prudente era levar o penico para debaixo da cama. Não digo que curei os meus medos do escuro, mas evitei uns bons calafrios usando o utensílio.
As crianças de hoje não têm mais medo de escuro. Não falta mais luz, a arquitetura acabou com a “lonjura” do banheiro, acabou com o penico.
“Urinó”, então, virou coisa do passado.
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