Recordis: do latim, recordar, voltar a passar pelo coração

Eu era uma criança e ela, uma menina. Mas, para mim, com tão poucos anos de vida, era uma mulher. E eu ia à casa do meu melhor amigo, meu vizinho, colega de escola, bola e brincadeiras, e ela estava lá. Descalça, sempre, e linda, e cada dia mais mulher.

Agora me dou conta de que foi minha primeira paixão e, sem dúvida, a maior “culpada” por essa estranha mania que tenho de admirar, a uma distância segura, uma mulher bonita e seus pés, sem nenhuma outra intenção que não a de alimentar meus olhos.

Às vezes ela vinha conversar comigo e falava para suas amigas (nenhuma delas mulher, nem linda) dos meus olhos – a vergonha, o embaraço, e aquilo que então eu não sabia bem o que era me impediam de olhar os seus. Seus pés eram meu porto seguro. Eram lindos, saudáveis, sujos de pisar no chão de terra, grama e vida.

(No interior as crianças ainda andam descalças? Será que ainda há interior?)

Quando fez quinze anos, quis que dançássemos uma valsa. Apavorado, me neguei.

Os anos passaram. A cidade como eu a conhecia foi-se embora, e eu dela. E por muitos anos nunca soube nada deles, do meu amigo e de sua irmã. Um dia me contaram que ela teve um filho. E que o pai da criança morreu. Mas eu só conseguia pensar nela como uma menina se transformando em mulher, descalça e cada dia mais linda.

Até que tive que voltar à cidade para enterrar minha avó. Fui a um restaurante, e mergulhei na saudade que sabia que sentiria da maravilha que era aquela velha enorme que segurava com uma só mão as minhas duas, pelos punhos, e me cobria de beijos. Fui acordado e transportado à minha infância quando uma mulher, de mãos dadas com um garoto, entrou no restaurante.

Era ela. Notei que os anos, as decepções, tinham agido. Já não era tão bela. Quase não havia nenhum traço daquela menina naquela mãe. Não me reconheceu e não fui falar com ela. Mas, mesmo de longe, consegui observá-la e seus pés. Eram os mesmos de antes, ainda lindos e doces. Ali, balançando os chinelos de dedo. O tempo e fracassos da vida não haviam agido naquelas extremidades.

Por um instante, voltei a desfrutar daquela sensação estranha, aquele embaraço, e senti saudade daquele tempo em que a vida estava começando e eu descobrindo tudo.

*Ricardo Viel escreve às segundas