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Rosana Almeida aceitou meu convite e escreveu este saboroso relato especialmente para O Purgatório. A ela empresto este grato domingo:
Não demorou mais que algumas horas para que toda a cidade ficasse a par da sensacional e trágica notícia: Valberto de Mirinho, o dentista, noivo de Alexandrina, mandara para o inferno o elemento que degustara o cabaço de sua irmã antes do tempo regulamentar – este, um forasteiro que chegara à pequena Santo Antonio de Jesus, no interior da Bahia, três anos mais cedo que aquele 1925. Todo almofadinha, gabando-se de falar espanhol e francês, abrira uma loja de tecidos e começara a fazer olhos para a senhorinha Bernadette, 19 anos, pertencente a uma das famílias mais tradicionais da região.
Naquela mesma tarde o farmacêutico Dr. Horácio Vasconcelos reuniu esposa e filhas, entre as quais estava Alexandrina, com propósito de deixar bem claro que, ainda que Valberto de Mirinho não tivesse fugido após o ato de insensatez, não havia a menor possibilidade de que uma portadora de seu sangue viesse a se casar com um assassino em tempo algum. Declarou, portanto, que aquele noivado jamais existira.
Meses mais tarde, cuidou para que a moça se unisse em matrimônio com o próximo pretendente que lhe apareceu: o Sr. Manfredo Liebermann, descendente de alemães e estabelecido em Ubaíra, a sudoeste dali. A moça, muito a contragosto, obedeceu às ordens do pai, mudando-se com o coração esbagaçado para a vida de casada. Vida que porém sonhara dividir não com esse, mas com o antigo noivo, a quem nunca deixaria de amar.
Qualquer outra mulher não teria queixas: Manfredo era um bem-sucedido homem de negócios, dono de comércios e imóveis para aluguel em Ubaíra e vizinhanças ao longo do Vale do Jequiriçá. Era marido carinhoso, muito embora cultivasse entre seus prazeres o de deixar a esposa sozinha em casa nas noites de quinta-feira para ir jogar gamão com os compadres. Divertia-se em saber que ela morria de medo do retrato da falecida sogra dominando toda a sala de dentro de sua moldura dourada. Alexandrina se encolhia na cama de jacarandá, abraçada os dois filhos pequenos apavorada pela velha de expressão severa, pescoço comprido e lábios finos, terror da criançada durante sua longa vida de beata fervorosa.
Assim vieram mais anos e duas meninas, Alexandrina cumprindo a contento seu papel de mãe e esposa amantíssima, cuidando do lar e reunindo as comadres em tardes de trabalhos manuais para o bazar da igreja, sendo a renda revertida para os menos afortunados, que eram muitos. Ninguém jamais suspeitaria do segredo que habitava a alma de Dona Xanda, então uma senhora de 38 anos, nem do amor que sempre nutrira pelo noivo proibido. Uma ou outra palavra solta escutara de sua boca a cozinheira Zuleide, empregada na casa desde que a moça recém-casada chegara à cidade.
(Muitas décadas além, já no fim do século, uma das netas de Zuleide comentaria com uma amiga a história que ouvia da avó quando criança e que sempre lhe assombrara, do tanto que sentia pena do destino da avozinha Alexandrina: Que merda, hein? Ter sua vida comandada pelos outros, ser obrigada a fazer o que não queria… Mas o que lhe restava? Sair pelo mundo em busca do noivo, como uma andarilha? Ou se conformar em viver de acordo com o que dela era esperado?)
Poucas semanas após ter dado à luz a caçula Elvira, Dona Xanda recebeu uma visita: tantos anos sombrios mais tarde, estava novamente em sua frente o eterno Valberto, belo e garboso como no dia em que pedira a Dr. Horácio sua mão em casamento. Eram 9 da manhã de um 12 de fevereiro, o sol brilhava forte sobre Ubaíra e fazia o coração de Alexandrina falhar alguns compassos.
– É verdade, Drinha… disse Valberto, num suspiro. – Você não me esperou…
Tão logo seu amor se foi de novo, deixando-a outra vez entregue à sorte, Dona Xanda tentou deitar ao forno a pequena Elvira. Salvaram a inocente o olhar atento e os ágeis braços de Zuleide, que nos meses seguintes viriam a testemunhar o comportamento cada vez mais bizarro da patroa: cortou a vasta cabeleira a tesouradas selvagens, deixando à mostra inúmeros caminhos-de-rato; vestia um sobre o outro todos os seus vestidos, arrumava as crianças e pegava o trem para Santo Antonio, voltando a Ubaíra assim que chegavam ao destino, repercorrendo o mesmo trajeto, e de novo, e de novo; arrancou da parede o retrato da velha, urinando e defecando bem em cima de suas honradas fuças; passou noites uivando como uma tresloucada que abortara a vida que não ousara ter.
Foi por fim internada num hospício em Salvador. Sofreu os dez próximos anos estranhando os filhos que a visitavam. “Os meus ainda são pequenininhos”, dizia.
Tomou choque e pancada, sentiu frio e fome, morreu e foi enterrada. Quando quiseram saber, seus ossos sem dono haviam sido incinerados e Alexandrina espalhava pelo mundo umas cinzas doídas, poeira sobre os móveis das gentes respeitáveis e não.
(Se ele a amasse de verdade, será que tinha reaparecido?)
Rosana Almeida é a convidada especial deste domingo. É autora do blog rosanamilliman.wordpress.com