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Uma mulher de olhar um tanto cansado está sentada detrás de uma mesa de madeira. Atrás dela, no topo de armários também de madeira, pilhas de papéis amarrados em calhamaços, tão amarelados que parecem não ter valor algum.

Um homem, branco, está sentado detrás de uma mesa equipada com computador, impressora, luminária e todo tipo de material de escritório. Nas paredes brancas atrás dele, desenhos de crianças, fotos que parecem de família e muitas referências a Bob Marley e a folhas de maconha presas nas paredes. De uma delas sai uma prateleira com diversos tipos de narguilé.

Estas cenas estão nas fotos do livro Bureaucratics, do holandês Jan Banning, que conheci quando fazia uma galeria de fotos para a BBC Brasil.

A mulher da mesa de madeira é indiana, e foi contratada para o cargo que ocupa porque seu marido, que fazia aquele serviço, faleceu (me pergunto o que ela fazia antes e como aprendeu aquele serviço). O homem dos narguilés é um francês que trabalha na divisão de narcóticos da polícia (me pergunto se ele fuma maconha ou se seu escritório é uma grande ironia).

Pode parecer um clássico caso de “humanização” do funcionário público, uma expressão odiosa que basicamente diz que esquecemos que as pessoas são pessoas, mas convenientemente lembramos disso explorando detalhes da vida delas de maneira barata para emocionar os espectadores.

Em todas as imagens tenho a impressão de estar diante de uma montagem meticulosa, de pessoas colocadas aleatoriamente em frente a um cenário. Mas as fotos tem humor negro, tédio,  alguma melancolia, orgulho, resignação, indignação passiva.

A composição muito ordenada das fotos só serve para tornar mais evidente o caos de todo o resto: dos papéis, dos badulaques, das tarefas diárias. Nas fotos onde os funcionários aparecem detrás de mesas e armários vazios, a falta desse caos é ainda mais significativa. Nenhum trabalho é feito ali.

Um Texas Ranger, em sua mesa repleta de símbolos bélicos, olha para a câmera como quem diz “I´ll see what I can do, m´am”. Um homem com a pele muito negra em uma sala muito azul tem uma expressão tragicômica, que diz “essa é a minha vida”. Uma mulher de burca em uma sala quase completamente vazia apenas está ali. Fico tentando adivinhar o que seu rosto diz.

A beleza de fotografar a burocracia está na mágica dessa relação figura/fundo. Não é preciso “humanizar” o funcionário público. Basta um instantâneo dos olhos dele, e do ambiente ao seu redor, para saber quase tudo o que é preciso sobre como funciona um país.

Fiquei imaginando como devem ser as fotos que não entraram no livro de Jan Banning. Ele me disse que quis fotografar Cuba, “por ser – digamos assim – o único exemplo de `socialismo real´”, mas não foi autorizado. Também não recebeu a permissão para fotografar no Vaticano, que “em certo sentido, é como Cuba”.

P.S.: Por questões de copyright, as fotos não podem ser publicadas neste blog. O livro, na íntegra, pode ser visto na internet. Mas para isso os senhores tem que se dirigir a este setor aqui.

Camilla Costa escreve às quintas-feiras

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