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Ninguém precisa explicar o que é um monstro: qualquer criança reconhece um, só de ver a cara.
Refiro-me ao seguinte: eclodiram nesta semana monstruosas evidências do que já nem tem mais cara de novidade. Entre 2002 e 2009, o governo dos Estados Unidos encarcerou pessoas, sem qualquer prova concreta, em sua famigerada prisão de Guantânamo, em solo cubano. Entre os prisioneiros, 30 deficientes mentais, um deles de 89 anos. Para ser posto entre as grades, bastava conhecer sobre o Afeganistão. Ou estar usando um relógio Casio. Ou portar 100 dólares. No cárcere, sublinhar livros já era suficiente para levar uns tapas na sola do pé. As condições dos prisioneiros eram tão aviltantes que muitos, como último recurso, atiravam os próprios excrementos na fuça dos guardas. Alguns chegaram ao suicídio.
Deu em vários jornais nesta semana. El País, da Espanha, deu capas e páginas e mais páginas sobre o assunto. O jornal teve acesso em primeira mão, junto a outros veículos, às mais de 700 fichas dos prisioneiros, vazadas através do site Wikileaks. Diz um trecho da reportagem de segunda: “A prisão funciona como uma imensa delegacia de polícia sem limite de estadia. (…) há reclusos tratados como presumíveis culpados, que devem demonstrar não só sua inocência como também sua falta de conhecimento sobre Al Qaeda e os talibãs para obter a liberdade. O único delito que as autoridades adjudicam a alguns deles é o fato de ter um primo, amigo ou irmão relacionado com a jihad; ou viver em um povoado em que houve ataques importantes dos talibãs; ou viajar por rotas usadas pelos terroristas e, portanto, conhecê-las bem.”
Ninguém precisa explicar o monstro. Permito-me apenas iluminar duas filigranas:
1) O método dos investigadores americanos remonta ao Império Romano. Começou com o primeiro imperador, Augusto. A lei era uma só, com duas partes. Uma, republicana: quem ofender a grandeza e dignidade do povo romano deverá ser punido com a morte. Outra, autocrática: o povo romano sou eu, o Imperador. Cito de orelhada o historiador romano Tácito: “Jamais houve mais consternação e alarme em Roma. Se tremia ante os parentes mais próximos, e na rua e nas praças públicas não se ousava nem sequer dirigir-lhes a palavra. Cada ouvido era suspeito, até mesmo as coisas mudas e inanimadas inspiravam estremecimento. (…) A delação e o terror haviam despedaçado todos os vínculos de humanidade”. Bastava trocar de roupa em frente a uma estátua do imperador para ser preso. E houve quem, como o escritor Petrônio, tenha preferido o suicídio à execução sem motivo.
2) O governo americano, que já deveria ter fechado Guantânamo, repudiou a divulgação das fichas e disse que elas estavam desatualizadas. Ora: ao não negar sua veracidade, o Estado norte-americano reconhece sua faceta monstruosa e obriga seus cidadãos e os de todo o mundo a conviver com ela. A propósito: é justamente um monstro, o Leviatã, que o contratualista Hobbes invoca como metáfora do Estado, pai garantidor da sobrevivência dos indivíduos, que o forjam abrindo mão de sua liberdade. E por que aceitar um monstro? “Seja pelo medo, pela dor, pelo perigo, pela morte, os homens se juntam em uma mutação de massa. (…) Sabemos que [a base do Leviatã] foi o medo. (…) Leviatã pareceu um deus mortal, feito pelo homem sob medida para imitar o velho Deus imortal”, explica o professor José Luís Villacangas Berlanga em La mutación del Leviatã.
Sigo com Villacangas para chegar à encruzilhada: “Leviatã viveu, se manteve, se reproduziu, sofreu mutações. As formas de reprodução do medo se multiplicaram (…). Por último, quase todo objeto pode ser fonte desse medo que nos inspira o sinistro. (…) A sociedade que se havia sentido protegida por seu exército o viu convertido em um bando de aventureiros.”
Conservo, pelo bem da ingenuidade em que repousa minha sanidade, a esperança de que o mero direito à vida não dependa de monstros. Em todo caso, ainda que assim seja, fecho com Villacangas: “Um monstro só pode aspirar à potência, à sobrevivência forçada e, chegado o momento, à autodestruição. A esperança de amar o mundo, essa, livre e sem medo, não lhe está concedida.”
*Ricardo Sangiovanni escreve aos domingos