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Eles riram um riso inocente e verdadeiro quando respondi que eu não tinha vacas. Já estávamos no terceiro dia do que era o caminho Inca de Cuzco a Machu-Picchu.
Íamos num grupo com diversos estrangeiros acompanhados por igual número daqueles carregadores quem riam. Aproveitávamos a paisagem e as histórias contadas pelo guia, enquanto eles transportavam barracas de camping, cadeiras, panelas, comida, talheres, copos, papel higiênico, tendas, mantas, e tudo o mais necessário para passarmos, nós, os turistas, muito bem.
Acordávamos cedo e o café já estava pronto. Saíamos a andar e eles limpavam tudo, desarmavam acampamento e partiam em disparada. Quando chegávamos, de tarde, ao novo acampamento, o almoço já estava no fogo. Passava o mesmo com o jantar.
Os carregadores são quechuas, povo originário das matas dos Andes. Até hoje vivem em harmonia com a natureza, em pequenas propriedades rurais e preservam suas tradições. Fazem esses trabalhos esporádicos para reforçar o orçamento e mastigam folha de coca para reforçar as energias. Falam quechua, idioma local, e arranham no espanhol.
Enquanto estávamos parados nos acampamentos, eu os acompanhava na tenda da cozinha escutando aquela língua estranha quase japonesa.
Já nutríamos alguma intimidade e ganhei até um apelido: Ch’aspucha. Seria, em quechua, barbudo, mas não exatamente isso, também moreno ou algo de mouro.
– No pasa nada, Ch’aspucha!, diziam, com os olhos brilhando e com um sorrisão, sempre que passavam por mim, me imitando com aquela frase que adorava pronunciar por seu sentido: “sem problemas, tudo certo!”
Foi na terceira noite, quando eles preparavam o jantar, que o cozinheiro me fez a pergunta inesperada:
– Quantas vacas você tem?
– Não tenho vacas.
Diante da resposta, eles riram, mas ainda tentaram: quantas vacas teria meu pai? Nenhuma, e por isso gargalhadas. Tentei uma explicação, sem sucesso. Eles apenas apontavam para mim e se contorciam de graça.
Insisti com algumas perguntas que, creio, eram tão estranhas para eles como aquela das vacas foi para mim.
A explicação só encontrei depois, lendo A Cidade Perdida dos Incas, de Hiram Bingham, o descobridor arqueológico de Machu-Picchu.
Bingham explica que na língua quechua o significado da palavra trabalho é diretamente relacionada com agricultura e pecuária; e o que se faz em contato com a natureza, sem chaminés. Ou seja, muito mais proveitoso. Para eles, portanto, eu era um legítimo vagabundo, daqueles bem felizes que aproveitam a vida. ¡No pasa nada!
Correntes diziam que os Incas formaram um dos maiores impérios do mundo com base na guerra. Bingham mostra que é impossível. Os Incas não concebem em sua língua a idéia de ‘soldado’. Não há palavra para exprimir esse sentido. Se não há soldado, não há guerra. Outro conceito, outra civilização.
Essas sim deveriam fazer parte das aulas de história de qualquer país da América Latina para que tivéssemos mais conhecimento sobre nós mesmos, ao invés de revirarmos todos os batidos conflitos europeus.
Vítor Rocha escreve aos sábados