Caminhando por entre empresários, professores, advogados, carpinteiros e mais uma porção de mentes plugadas no sistema, Neo distrai-se da lição de Morpheus sobre a Matrix: seu olhar abobado havia seguido o sorriso ou as curvas de uma loira que lhe viera, fatal, em direção. A reprimenda do mestre: “Estava olhando para mim, Neo? Ou para a mulher de vermelho? Olhe de novo!” Vira-se nosso herói e, em vez da loira, vê sim é a ponta do cano do trabuco implacável do agente Smith.
Era só uma simulação. Mas a mensagem é clara e apela a dois valores falazes que circulam nas veias da audiência do Ocidente: 1) Quem vai atrás de mulher quebra a cara. E 2) entre as mulheres, as mais atraentes são as loiras, satanizadas como ora fatais, ora burras. Antecipemo-nos aqui à pergunta do bom investigador, que desejará saber quem inventou essa história toda, e adiantemos nossa hipótese.
No filme (Matrix, 1999), quem inventa a loira é o programador Mouse. É pouco. Em busca da verdade, cinéfilos dirão que o verdadeiro inventor das loiras fatais foi Alfred Hitchcock. E que quem deu a elas sorriso eterno, lânguido mas intelectualmente nulo, foi a Marilyn Monroe de Os Homens Preferem as Loiras (1953).
Ainda não é suficiente. Mais definitivo e original será defender que o responsável pela primazia das loiras foi o poeta e filósofo italiano Francesco Petrarca. Sua musa, Laura, foi a primeira personagem memorável loira, no século XIV. Virou um modelo. O historiador Luigi Surdich nos diz: “Laura é uma criatura que não possui uma identidade física determinada com precisão, porque sua fisionomia é descolorida nos traços genéricos dos ‘belos olhos suaves’, do ‘doce riso’ e sobretudo dos ‘cabelos de ouro'”. Fica óbvio: os séculos, por homologia, derivariam da falta de identidade física outros injustos vazios, ora moral (loira fatal), ora intelectual (loira burra).
Petrarca, além de plantar a semente da supremacia das loiras, propagandeou essa história de que sucesso e prazer não convivem. Em sua “Carta à posteridade”, ele diz o seguinte: “muito embora o fervor da idade (…) me impingisse ao prazer, meu pensamento teve sempre nojo de torpezas deste tipo”. Afirma que abandonou o sexo aos 40 anos: “embora me sentisse ainda vigoroso e robusto, de tal modo me saiu da alma todo apetite obsceno que perdi até a memória do que fosse isso, como se jamais tivesse visto mulher”. E prossegue contando ao futuro que, livre da luxúria, tornou-se o intelectual mais importante da Europa em seu tempo.
Alto lá, amantes dos prazeres da carne: há esperança. A imagem que o poeta deixa de si mesmo é tão edificante quanto inverídica. As cartas de Petrarca foram minuciosamente editadas por ele mesmo e contêm “calculadas omissões”, diz Surdich. E o professor Luca Carlo Rossi, baseado em fontes confiáveis, dirá a seus alunos que o intelectual seguiu expandindo a prole bastarda depois dos quarenta.
Mas tudo isso talvez ainda não seja o bastante, e alguém aparecerá para negar que foi o poeta italiano o inventor das loiras. Em todo caso, Petrarca, se fosse Neo, não teria deixado a ninfa de vermelho escapar.
*Ricardo Sangiovanni escreve aos domingos
5 comentários
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abril 10, 2011 12:12 pm às 12:12
Tatiana Mendonça
você está disposto a tornar-se o intelectual mais importante do Brasil levando a cabo a missão que Petrarca só propagandeou? eis a questão :)
abril 10, 2011 1:32 pm às 13:32
Ricardo Sangiovanni
Jamais, Tati, jamais! Para virar intelectual petrarquesco me faltam talento, vontade e, principalmente, força de vontade :) Mas para quem quiser ser o intelectual mais importante do Brasil, melhor fazer o que Petrarca fez, e não o que ele disse que fez. Um dia ainda escrevo sobre as mentiras desse safado, há várias… hehehe
maio 1, 2011 10:40 pm às 22:40
rosanamilliman
Ricardo,
li quatro de seus textos e estou encantada. Não vou ler mais porque amanhã tenho aula de alemão cedo, portanto preciso ir dormir.
De uma certa maneira, estou atônita por vc ter gostado do que escrevo, que nada tem de intelectual. Puro sentimento: aquela história que postei como “O Velório” me aconteceu há alguns bons meses… fiquei desde então na cabeça com o cara que entrou no boteco dando a maior pagação pra todo mundo. Adoro essas coisas da vida.
Beijo,
Rosana
maio 1, 2011 11:14 pm às 23:14
Ricardo Sangiovanni
Rosana, obrigado pela visita, que bom que gostou dos textos, volte sempre :) Repito que acho seus textos ótimos, aliás sinta-se à vontade para mandar algo para a gaveta ilustre do Purgatório. Meu gosto passa longe da dita “intelectualidade” – é ao contrário: o intelecto é que tem que ser uma das ferramentas para ajudar a gente a identificar o que gosta. Ademais, intelectual por intelectual, sou mais você, que estuda alemão! Depois tenho que aprender como trocar links com outros blogs, para fazermos uma dobradinha. Um beijo então e obrigado novamente, Ricardo.
maio 2, 2011 10:00 pm às 22:00
Rosana Milliman
:-)
Morri de dar risada com o texto do burro!!!
Com certeza farei outras visitas, sim! Li alguns textos de outras pesoas de que tb gostei muito.
Cite um meu de que vc tenha gostado que eu mando!
Bj,
Rosana