No fundo passava um rio. Fino, porém rio.
Da beira da varanda da casa vermelha não se enxergava o início dele, via-se somente o corpo, curso de pequeno volume, pouco barulhento. Confidente.
Findava na queda do cipó, onde este se amarrava nas nuvens.
Nas primeiras horas da manhã teimava em fazer risada.
Quando chorava, formava a alegria das margens e a tristeza das formigas.
Nunca se soube o porquê de se chamar Capube.
O rio vinha pra dentro de casa pelas mãos de vovó, quer pelo banho no chão da casa, quer pelo bordado.
Quando saía do meu canto, teimava em levá-lo no bolso – moedas de água.
Era verde de todo lado e transparente no que fosse dentro.
Era reflexo, como quando olhei de mim e achei você. E foi o meu segredo.
À tarde era hora de mimo com os corpos: nunca rejeitava o que quer que viesse do nosso movimento.
Abraçou-nos como o céu da boca abraça um pedaço de jambo.
Que alguém tinha o Capube por lá por cima ou lá por baixo, nunca pudemos dizer de verdade.
Como vinha sempre e ia sempre e nunca nos deixava, ele era nosso coubesse ou não dentro da cerca.
Virava noite com a noite. E ninguém se arriscava. Não que fosse traiçoeiro, mas era o momento dele e ai de quem não respeitasse.
No fundo de casa passa um rio chamado Capube.
E cada vez mais ele é um de nós, que já ouvi meu pai dizer “se ele morrer morremos todos”.
A casa é vermelha, o campo nem é tão vasto.
Mas temos o Capube dentro do limite de nós. E isso já é a grande-certeza-de-que-não-ficaremos-apartados-da-beleza.
*Carmezim escreve às quartas
8 comentários
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abril 6, 2011 8:01 am às 8:01
Jorge Chichôrro
Boa Carmezin!
abril 6, 2011 1:07 pm às 13:07
Fernando Pessoa
Carmezim, o Capube é mais belo do que o Tejo?
“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.”
abril 16, 2011 12:17 pm às 12:17
Carmezim
Acho que é quase quase a mesma coisa…
abril 9, 2011 5:01 pm às 17:01
Lívia
Que coisa singela e gostosa se jogar na cabeceira de um rio e deixar a correnteza levar…
Carmezim, que delícia um quintal e um texto assim!
Fez-me lembrar, do querido Manoel, em seu Livro das Ignorãças:
“O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas
maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os
besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos.”
Obrigada e abraços!
abril 16, 2011 12:20 pm às 12:20
Carmezim
Acho que pesquei dele umas coisinhas do texto. “Nas primeiras horas da manhã teimava em fazer risada”. Quando escrevi, lembrei. Adoro o Livro das Ignorãças.
abril 11, 2011 4:51 pm às 16:51
Diego D.
Não disse isso antes, mas quando li o texto anterior pensei em As Margens da Alegria, de João Guimarães Rosa. Mais pelo espirito, do que pela forma. Mas havia ali uma vocação (não sua para ser ele, mas do texto para fazer par — ou da emoção que o texto me deu para fazer par com a emoção que o texto de Guimarães me deu).
E esse texto agora aprofundou esse paralelo, na minha cabeça. Não pelo rio, em si, mas pela relação (necessariamente) poética dos personagens com o rio, algo que vai da observação ao contato, e que é revelado em sua especificidade pelo modo como você escreve.
(digo necessariamente poética justamente por isso: porque a revelação da relação passa, acho, pelo modo como você a constroi).
Enfim, acho que você consegue estabelecer uma tensão prolifica no texto, e é dessa tensão que sai um certo sentimento dubio, de proximidade e distância, o qual podemos colocar em relação paralela com aquilo que os personagens nutrem pelo rio.
Difuder, gostei muito, parabéns.
abril 16, 2011 12:22 pm às 12:22
Carmezim
Dissecou o texto. E eu fiquei impressionado com a análise. “Difuder”.
abril 30, 2011 6:48 pm às 18:48
Romulo Osthues
Putz: “Difuder” mesmo.
De foder e ficar relando água pela goela até quando não se tem sede para ver se a beleza de uma poesia está na tensão dos versos ou nas imagens que se criam com eles.
De marejar os olhos secos de quem vê, da janela grande e transparente, um rio de luzes e buzinas de automóveis – e só.
Queria abrir a torneira do banheiro e fazer a barba com espuma Nivea®, lâminas Gilette® e água do Capube®.
Vou sair agora para a noite, tentando fazer dos trilhos do metrô da linha verde o curso do rio: sei que, quando eu voltar, cheio de álcool trabalhoso para o fígado, verei nas primeiras horas da manhã um Capube que teimará em fazer minha risada.
Vamos mergulhar aqui em Sampa também, Carmezim? “Puta falta de sacanagem” poetizar um Capube para o amigo que só tem por perto um Tietê e um Pinheiros fétidos.
“Me dá um cigarro” e um Capube, esse seu.