Ai, quase morro de emoção agora há pouco! Bom, não deixaria de ser irônico: é que meu caixão acaba de chegar da capital. Encomendei-o na melhor funerária do estado. Demorou uns três meses para ficar do jeitinho que eu queria, mas valeu a pena esperar. Ele está lá na sala, sendo admirado pelos filhos, netos e vizinhos. É de cerejeira, branco, com tampa de vidro, para deixar o corpo inteiro à mostra; nas laterais há rosas douradas e o final do Salmo 23 – “Minha morada é a casa do Senhor por dias sem fim” –, em letras também douradas. Ai, como é lindo meu caixão! Dá até vontade de morrer logo. Brincadeirinha. Quero viver por muito tempo ainda. Sem contar que faltam muitos preparativos para o funeral. Agora, com sua licença, vou contemplá-lo mais um tiquinho.
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Minha filha bate, revoltada, à porta do quarto. Ela está fora de si, em prantos, falando disparates. Ora, qual é o mal de se comprar o próprio caixão? Já estou com 74 anos. Cedo ou tarde eu não teria um? Pois que seja do meu gosto. Tudo do meu jeito: caixão, mortalha, coroa de flores, velório, enterro e missa de sétimo dia. Já tenho quase tudo planejado. No velório, quero que se distribuam balas de tamarindo na entrada, o sabor ajudará as pessoas a canalizarem a emoção certa para essas ocasiões: inconformidade e encantamento. Sim, senhor, é assim que deve ser.
Ainda não terminei de escrever a mensagem que virá impressa no convite da missa de sete dias; quero um texto bem bonito e tocante. Estou lendo muito para me inspirar. Gosto da maneira como Henriqueta Lisboa aborda o tema morte. “No oceano integra-se (bem pouco) uma pedra de sal./ Ficou o espírito, mais livre que o corpo./ A música, muito além do instrumento”… Já dos ultrarromânticos, aqueles do mal-do-século, não gosto muito. Também separei algumas reflexões shakespearianas sobre o assunto. “A imagem da morte deve ser como a imagem de um espelho que nos ensina o quanto a vida é um sopro passageiro.” (Oh, esse moço sabia das coisas.)
Minha filha parou de bater à porta, depois de ter ameaçado sair de casa com seus filhos, caso eu não devolvesse ou jogasse fora o meu caixão. Muito engraçado. Até parece que ela tem para onde ir. Quem sabe volta para a casa daquele biltre do ex-marido dela, que já a expulsou uma vez, e divide a cama com ele e a nova mulher. Será que ela não percebe que estou fazendo isto para poupá-la destas preocupações menores quando, ao contrário do que eu gostaria, ela desabar, tornar-se um caco físico e emocional perante a minha passagem? Já meu filho não deu grande importância. Achou até engraçado. Soltou um “mamãe, você é louca!” e, cinco minutos depois, saiu para o futebol. Provavelmente vai trazer os amigos para verem meu lindo caixão. Ai, é melhor eu preparar uns petiscos e passar um cafezinho.
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Ufa! Já é quase meia-noite, e não faz quinze minutos que a última visita saiu. Nossa, quanta gente! Espero que todos compareçam com o mesmo empenho no “dia oficial”.
Ai, estou tão entusiasmada!
Assisti ao meu primeiro enterro quando tinha três anos de idade – era o da minha bisavó. E, apesar de ser muito novinha, lembro de algumas imagens, algumas cenas das quais eu participava como espectadora ignorante. Lembro-me, por exemplo, das pessoas chorando; da minha avó e seus irmãos orando no quarto, ao redor do corpo jazido na cama; da minha mãe me abraçando forte e tampando meus olhinhos durante a passagem do caixão pela sala.
O segundo foi o da minha avó. Eu contava então com 12 anos. Ali que realmente captei a reação das pessoas diante da morte. Mas eu não compartilhava dos mesmos sentimentos delas; não sentia pena, tristeza ou indignação — apenas uma ligeira saudade adiantada, confesso. Achava, e acho, que vovó havia ido para um lugar melhor. Abalo mesmo foi ver minha mãe chorando, abraçada a mim do mesmo modo que eu me agarrava a ela na minha infância. E também me chocou uma discussão durante a preparação do corpo. Minha mãe e minha tia-madrinha queriam usar um vestido branco, simbolizando a paz; outra tia, porém, jurava de pé juntos que vovó lhe confidenciara a vontade de ser enterrada com o vestido azul que usara em seu último aniversário. Por maioria de votos, o branco ganhou. Creio ter sido aí que, meio inconscientemente, jurei a mim mesma ser a organizadora do meu próprio funeral.
A propósito, eu pretendo ser enterrada de azul. Tenho um vestido perfeito para a ocasião e já o estou adaptando para uma manipulação mais fácil, trocando os botões por velcro.
Desde os 40 eu pretendia comprar meu caixão, e depois minha vaga no cemitério. Mas meu finado marido, Afrânio, que Deus o tenha, nunca me permitiu. Ele tinha pavor de tocar no assunto morte. Nem lia nos jornais as reportagens envolvendo assassinatos ou acidentes fatais. Há três anos, faleceu. Foi uma trabalheira arranjar tudo de última hora! Menina de Deus, você não tem noção!
Agora que Afrânio não está aqui para se incomodar, resolvi me permitir este grande e antigo sonho. Meu funeral será divino!
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Não tenho ideia de que horas sejam. É tarde; já se passaram mais de duas horas desde minha última anotação.
O fato é que eu não consigo dormir. Então decidi me levantar. Fiquei a escutar se havia barulho em casa, não há. Protegida pela madrugada, vou experimentar meu caixão. Dar uma deitadinha rápida, para ter uma prévia da sensação, saber se é apertado lá dentro, essas coisas. Mas acho melhor tomar uma caneca de café antes. Minha filha acorda cedo para ir trabalhar. Vai que eu adormeço no meu caixão, e ela se depara com a cena. Do jeito que é aquela ali, é bem capaz de ter um troço e cair morta. E eu não pretendo ceder meu caixão dos sonhos a ninguém, nem aos meus familiares mais íntimos.
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Breno Fernandes escreve às terças
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