Se a rota fosse calculada de forma milimétrica talvez não entrasse pela fresta da janela com tanta destreza. Invadiu o apartamento como se pulasse a cerca de um latifúndio, sem permissão, arreasse as sacolas, montasse acampamento. Ficou ali na minha frente, voando, voando e parado no ar.
O balão tinha quatro cores. E meu coração era um latifúndio sem invasores até então. Eu tinha um livro sobre a mesa, um copo de coca-cola sem gás e duas folhas para rascunho, no fundo impressa a última fatura do cartão de crédito com compras como o prato de comida chinesa no sujinho da esquina.
Eu tinha sentado na mesa para escrever a última carta. Falaria em distância, discorreria sobre o frio insólito da cama, do vazio no espaço e no tempo, do requeijão cremoso que tinha deixado azedar (eu não gostava de requeijão cremoso, ela sim), da almofada viciada, dos gatos com olhar perdido. Ia falar da casa e de mim e colocaria no fim um dois versos soltos de algum escritor preferido por ela.
O balão, no entanto, triturou as minhas certezas.
Não fez mais do que dois movimentos: ameaçou cair no sofá – e eu fiz um movimento brusco para evitar, que se mostrou desnecessário – e logo depois ficou a menos de cinquenta centímetros dos meus olhos iluminando com o fogo de dentro o sapato rasteiro dela que tinha ficado num canto da sala.
O balão murmurou algo de liberdade. De quentura. De beleza. Recheou de vida o fim de tarde inóspito de dentro de mim.
Quando resolveu sair por vontade própria, assim como tinha entrado, acenei com a cabeça e agradeci. Voltei os olhos para os papéis e vi na na fatura do cartão a compra dos ingressos do cinema, um filme que ela tinha adorado. Aí escrevi assim:
hoje um balão entrou pela janela aqui de casa e tudo tudo tudo o mais do mundo ficou pra trás, só não você.
Carmezim escreve às quartas-feiras
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