Prezado Mário,
Desculpe por tirá-lo do merecido sossego do qual imagino que esteja desfrutando desde que nos deixou, mas sua ajuda se faz necessária: o assunto é grave, e disso até sei eu, que sou homem comum, sem o rastro ou a perspectiva de uma contribuição valiosa para a cultura, a arte e a literatura nacionais. O caso, Mário, é que abandonamos o legado que você e seus companheiros nos deixaram; somos modernos na data, mas não na vida. Modernos, que eu digo, no sentido de termos consciência do significativo papel social que exercemos, como bem definiram duas pensadoras, Mariza Veloso e Angélica Madeira, em um livro que degluti recentemente: Leituras Brasileiras — Itinerários no Pensamento Social e na Literatura. Nele, inclusive, encontrei uma bonita citação sua, um trecho de uma conferência, que dizia:
(…) o caminho que conduz o espírito para a sua integração no cosmos passa necessariamente pela integração no território da nação. No caso particular da arte, é pela imersão no nacional que se dá a comunicação com o universo inteligente.
Abrimos mão, sem nenhuma vantagem por isso, da ideologia nacionalista em nossa literatura, Mário; abrimos mão dessa tradição que começou com os inconfidentes, que foi uma das principais bandeiras dos românticos — mesmo que de modo atravessado, com muita influência do olhar estrangeiro — e que amadureceu e se hegemonizou com você e a sua patota. Talvez essa perda esteja relacionada com o esgotamento do nacional-desenvolvimentismo, nos anos de 1980, e com a intensificação da globalização, na última década do século XX, que deixou o campo cultural muito norteado, com o perdão do trocadilho. Talvez seja porque, como certa feita escreveu o crítico José Onofre, forças ocultas (mentira: ele fala da associação entre literatura e marketing, mas deu vontade de dar uma quadranizada no texto) — talvez seja porque forças ocultas mudaram o papel do escritor, o qual, se antes era lido por sua capacidade de “nos levar a pontos desconhecidos da emoção e do entendimento das coisas”, hoje seria um igual, alguém que compartilharia conosco sentimentos que já conhecemos. E não conhecemos o projeto de futuro do país, Mário. O governo conhece, o governo tem feito muitas coisas boas até, se estiver lendo os jornais e dando o desconto certo aos interesses de cada um deles, que todos têm seus interesses, você deve estar ciente disso. Mas o cidadão comum não conhece nada ou quase nada. Os escritores, idem — como então podem escrever e contribuir com o projeto de nação que se quer construir?
Com efeito, existem belas obras literárias nestes tempos, Mário. Além disso, como escreveu outro dia o Vargas Llosa, em uma época na qual se demanda que as pessoas se especializem cada vez mais profissionalmente, que recortem um pedacinho de uma coisa e saibam tudo sobre ele, o romance se tornou o último refúgio onde podemos produzir algo abarcando a vida em toda sua complexidade. Então não estou dizendo que o que se tem feito seja medíocre ou desimportante. Estou dizendo, sim, é que temos a responsabilidade moral de continuar o trabalho de vocês, uma vez que ele não está pronto, e a estamos ignorando. Abandonamos pela metade nossa tarefa de ajudar a construir o país. E isso depois de o grosso do trabalho ter sido feito por vocês, que com a sacada da antropofagia conseguiram — apontam as professoras Veloso e Madeira — encontrar um caminho para se desenvolver um nacionalismo que se ajuste às influências estrangeiras e ao colonialismo cultural que sofremos.
Eu acho, Mário, que desaprendemos a antropofagia ritual dos nossos antepassados indígenas, aquela com fins de elevação espiritual. Com a proliferação das tecnologias de compartilhamento de produção artística, viramos glutões da junkie food cultural e, por isso, estamos obesos (muito do que chamam de bagagem cultural devia-se chamar gordura cultural). E, como a obesidade caminha de mãos dadas com o sedentarismo, inventamos desculpas esfarrapadas para não nos esforçarmos, como a de que o simples plasmar de sentimentos e experiências contemporâneos em nossa literatura vai ajudar as pessoas a se descobrirem, a se entenderem e, consequentemente, a saberem que rumo devem tomar, individual e coletivamente. Balela, amigo Mário. Balela.
Era isso, meu caro. Desculpe a exaltação, é que o assunto me angustia deveras. Escreva-nos, diga-nos o que pode ser feito. Melhor ainda: apareça, porque desconfio de que, apesar de falarem muito de você, infelizmente, andam te lendo muito pouco.
Um abraço,
B.
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Breno Fernandes escreve às terças
3 comentários
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maio 3, 2013 11:16 am às 11:16
Davi
Breno, eu mesmo jamais li Mário de Andrade, salvo no colégio e por acidente.
De certa forma, me vejo como alvo ideal desta crítica.
Confesso que isso não me inquieta. Talvez eu esteja mesmo gordo de cultura.
Em sua crítica, na verdade uma apologia, é claro que exagero, e acredito que saiba que o faz. Essa argumentação afetiva faz parte da coisa.
Amo o Brasil e os brasileiros, mas o nacionalismo me é absolutamente estrangeiro.
maio 3, 2013 11:18 am às 11:18
davilopescine
*é claro que exagero
maio 3, 2013 11:19 am às 11:19
davilopescine
*exagera