Ansiava tanto chegar em casa, que deixou a costumeira prudência de lado e tesourou o caminho inteiro; até furou um sinal vermelho. A razão da pressa era a quarta-feira, dia de futebol na tevê. Isso e o fato de que ele mandara instalar o sinal a cabo naquela tarde, estava empolgado para estreá-lo.
Há muito desejava assinar a tevê a cabo, mas postergara e postergara sem motivos. Dinheiro não era o problema. Nunca fora. Pouca gente podia abrir a boca para elencar tantas conquistas quanto ele. Carro do ano? Tinha: motor 1.6. Apartamento? Cento e oitenta metros quadrados, ótima localização. Tecnologia? Os iTroços todinhos. Preparava-se agora para dar entrada em uma lancha ou casa de praia. Tudo isso com pouco mais de trinta e com a barriga controlada, o que contabilizava como pontos extras. Quando fazia essa revisão de seus triunfos — fazia-a neste momento, no elevador —, sentia até certo embaraço pela demora em pôr tevê a cabo.
Buscou as chaves automaticamente, a cabeça pensando se deveria assistir ao jogo pelo SporTV ou pelo ESPN, e ainda não se havia decidido quando entrou em casa, contemplou a sala de estar e viu. Aquilo que o fez recuar, apoiar as costas na porta para não cair: parte da antena cobria a vista da janela da sala, justo a privilegiada com uma ponta de mar, entre dois prédios.
— Mas que porra é essa?! — gritou. A noiva apareceu na sala, trazendo um sorriso que se estilhaçaria em instantes. — Como é que você deixou eles instalarem essa antena aí? Arruinou a vista! — pelo combinado, ela filara o trabalho à tarde para receber o técnico. — Arruinou a vista…
A moça gaguejou, calou-se, tentou mais uma vez dizer algo; mal e mal umas desculpas saíram, ele convulsionou. Largou a pasta, desatou com fúria o nó da gravata e praguejou um índex de palavrões — uns poucos para ela, a maioria para os céus.
— A minha vista! Como é que você deixou? A minha vista… — passados alguns minutos, a voz saía rouca e muxoxa, como a de uma criança lastimosa do brinquedo quebrado. Ele desabou no sofá.
A noiva abraçou-o, tentou acalmá-lo. Prometeu ligar para a assistência e pedir que viessem sem falta no dia seguinte, mudar a porc… a antena de lugar.
— Faça isso mesmo — o tom crescera: de criança a pai severo.
— Vou ligar agora. Por que você não vê um pouco de tevê e tenta relaxar? — ela o soltou e acionou o controle remoto; depois, apanhou o telefone e enveredou-se pelo corredor.
O Discovery passava um documentário sobre tubarões em full HD. Ele o mirou dois segundos, o tempo de formar a consciência de que, nem se fosse o futebol, não continuaria assistindo. Nada lhe poderia relaxar aquela noite. Sinceramente, teve vontade de chorar; de abrir o berreiro; derramar-se em calundu. O que custava?, indagava-se, o que custava terem posto a antena um pouco mais para baixo?
Pensou em pedir à noiva que se informasse da disponibilidade de um serviço vinte e quatro horas, que viesse de imediato, ele pagaria, contudo não a viu por perto, quando se levantou do sofá, e não teve ânimo de procurá-la. Foi até a janela e olhou para a antena com os mesmos olhos de um troiano que contemplasse o presente dos gregos após a revelação do que havia dentro dele. Para além dos prédios vizinhos, as luzes de um navio solitário eram a única coisa que se podia enxergar. No décimo quarto andar, o vento era forte e frio. Gostou de senti-lo e gostou de ficar parado onde estava. Respirou fundo, tentando abstrair a doída constatação de que, sem a antena ali, teria muito mais vento para si.
Quando ela acabou o telefonema, correu para lhe dar as boas notícias, mas estancou ao vê-lo em frente à janela, imóvel. Deu-se conta de que, nos dois anos que viviam juntos, ele nunca se demorara ali por mais tempo que o que se leva para cuspir. Pensou em verbalizar essa observação, mas preferiu deixá-lo quieto. Voltou para o quarto.
Se tivesse mencionado algo, ele não saberia o que dizer.
Ou talvez soubesse — quem faz ideia de quantas respostas o vento pode sussurrar em nossos ouvidos?
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Breno Fernandes, a partir de agora, escreve às terças. Diego Damasceno, nosso ex-titular das terças, pediu baixa para cuidar da vida. Leva nosso agradecimento e nosso abraço. E deixa as portas abertas.
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