Ontem completaram-se dez anos da morte de Jorge Amado. Lembro-me como se fosse hoje daquele dia – parece até que foi ontem.

Porque fui o enviado do Colégio Antônio Vieira ao funeral do escritor mais popular e (não por isso) o mais importante – o mais querido, enfim – de lá da terra. A missão especial: entregar uma coroa de flores a Zélia Gattai, sua esposa. E junto com a coroa uma foto da turma de mil novecentos e perdi a conta em que Jorge aparece circulado, menino vestindo a farda da escola. Ela agradeceu e me abraçou carinhosa. Terá-me dito quaisquer palavras doces, mas é do abraço que me recordo: pareceu-se muito com os que me costumava dar minha avó. Doçura de vó.

Eu tinha 17 anos e aquele foi o primeiro funeral em que estive – até então, nunca tinha perdido parentes ou amigos próximos; tive a sorte de ter meus dois pares de avós vivos até completar 20 anos e, hoje, tenho ainda o par materno. Havia sido escolhido para entregar a homenagem porque, há dez anos, eu era o presidente do grêmio estudantil do colégio. Uma sorte de Pedro Bala, capitaneando aquele grupo de moleques perigosos da velha escola – muito embora (porque envolto sempre em amorosidades e, ademais, tímido, talvez como Jorge) não fosse lá de derrubar tantas negrinhas no areial.

Conheço uma porção das histórias de Jorge, mas confesso que ainda lhe devo a leitura de outros romances para além de Capitães da Areia e Jubiabá. Sobretudo os da fase em que ele insere o Brasil no chamado “realismo maravilhoso” latino-americano da primeira metade do século passado.

A propósito: foi num curso em que se discutia esse rótulo duvidoso que conheci um amigo de Jorge, o pintor colombiano e também professor de literatura hispano-americana Fabio Rodríguez Amaya. Recém-chegado à Universidade de Bergamo, na Itália, para iniciar meu mestrado, em outubro de 2009, apresentei-me a Fabio – desde então meu orientador e agora um amigo – como sendo de Salvador. Ao que ele, em castelhano, retrucou: “Salvador? Encantadora cidade. Tenho por lá um grande amigo.” Aguardando ouvir nome desconhecido, perguntei quem era o tal fulano. “Jorge. Jorge Amado.” Entupi.

Um homem do povo, das ruas, simples, que fala com todos e poderia ser qualquer um. Foi a descrição que Fabio me fez de Jorge Amado. Igual à descrição que lhe faria qualquer outro amigo, em qualquer outra parte do mundo – prova de que um grande homem é só um, passe ele por lugares vários, mais vários ainda que sejam seus interlocutores. Fabio contou-me ter estado um par de vezes hospedado em casa de Jorge e Zélia na Bahia, fora as outras vezes em que se encontraram em curadorias de prêmios literários pelo mundo. Senti-me todo importante por conhecer, por acaso e tão longe de casa, alguém que conviveu com e admirou um grande de minha terra.

Revia, na semana que passou, imagens de entrevistas de Jorge Amado em um especial de televisão. Pude verificar quão verdadeira era a descrição de Fabio quando Jorge tratou de simplesmente “minha filha” a repórter que o entrevistava – a moça era a atriz Irene Ravache.

E que ninguém me julgue menos homem por confessar que fui surpreendido por lágrimas descendo-me dos olhos quando aquela canção de Caetano, Milagres do Povo, fechou o especial: “Quem é ateu…”

Não sei se foi a canção em si que molhou meus olhos, ou se foi a cena antes dela, em que Jorge e Zélia, já velhinhos, close nas carícias de dedão nas mãos dadas, faziam questão de explicitar seu amor de tantos anos, ainda e sempre apaixonado tanto quanto companheiro. Tanta questão quanto faziam de esconder a receita disso, porque essa afinal, para ser transmitida, só mesmo se for em segredo; ou tem que, quem sabe, morrer com cada par que a descobre, para ser reinventada por acaso por próximos que virão.

Contei a história de minha ida ao funeral de Jorge Amado ao amigo Ricardo Viel, meu vizinho das segundas aqui neste Purgatório. Ele brincou: “Essa história, no dia em que você virar um escritor famoso, você aumenta: diz que foi ali no funeral que decidiu que queria ser escritor.” Eita que virar escritor é dureza, amigo! Que dirá ficar famoso – é ambição que não cultivo. De parecências com Jorge me bastam o ter nascido na Bahia, o ter estudado na mesma escola, o ter uma porção de amigos sinceros e (com sorte) o ter sempre fartura de gentileza e riso para oferecer a eles.

Minto: quem dera eu também, como Jorge, tivesse um dia uma minha Zélia ao lado; e que ela, por razão nenhuma além de puro gostar, nunca mais resolvesse largar de minha mão.

Eu, como Jorge, amado, não largaria da dela.

Ricardo Sangiovanni escreve aos domingos