por Davi Boaventura
Não digo noites seguidas intermináveis, como sofreu Tom Hanks ou como sofreram os pobres jogadores juniores do Nacional do Amazonas, esquecidos em um saguão por incompetências administrativas putapatéticas. Mas dormir em aeroporto por uma noite ou outra, solitário, à espera do próximo voo, possui, sim, sem dúvida, um sabor idílico. É o contato máximo com a natureza urbanoide moderna feita de Cimento & Amor.
Não é, não?
É, sim, claro que é.
É, porque cria, como só um aeroporto é capaz de criar, a ilusão imediata quase homogênea de liberdade, subversão, abnegação e otimismo, o controle de si, a contribuição definitiva ao embrutecimento da resistência frente às adversidades do Terreno. E esta quimera benéfica ocorre mesmo se se dorme refestelado em cadeiras de metal pintado, a cabeça babante sobre o peito, embora o correto seja se estender ao chão, barriga para cima, em um canto afastado-silencioso-e-deserto – em um pequeno ninho, na verdade – sob um lençol improvisado por camisas e casacos leves e a mochila semivazia de travesseiro (pois sono sentado, assim como o uso diário de cuecas, é uma prerrogativa de proteção que você, meio intelectual, meio de esquerda, deve abandonar).
A ressalva, porém, é triste, desumana, mas inevitável: existe claro desnível entre os aeroportos brasileiros, quando se trata de Condições Ideais para Sonolência de Passageiros, alguns à beira de um colapso estratégico, sem manutenção ou sob efeito de ampliações desordenadas.
Porto Alegre, por exemplo, fora os extremos climáticos, perde valiosos pontos pelo excesso de lojas no andar superior, reduzindo as Áreas de Fuga, enquanto Teresina, na prática, obriga seus viajantes a dormirem na pista, tão acanhado que é. Salvador, por sua vez, seria perfeito, não fossem os moradores de bairros vizinhos que, à caminho de casa, estacionam no aeroporto para comprar milk-shakes da Bob’s e sobem ao andar superior, o Dormitório, com suas ininteligíveis conversas sobre a falta que o cinema do Villas Boulevard faz.
Já São Paulo e Rio, apesar das ótimas instalações – o chão razoavelmente limpo, os espaços amplos, a temperatura média agradável –, tendem a abrigar sonos inquietos. Acumulam-se, em função do número obsceno de passageiros dormindo ao redor, pesadelos, bruxismos, roncos, sonâmbulos e espasmos. São os hospitais de campana da Guerra Civil Brasileira. É comum presenciar adultos e crianças conversando enquanto dormem, ou brigas de hermanos nas quais a mulher xinga o marido de cabron, o que invariavelmente te faz sonhar com cabras, ou amigos fotografando o sono de companheiros de viagem, ou pessoas rezando por um cochilo bom, ou funcionários da Infraero olhando a todos com inveja, e o instante ínfimo antes de adormecer, em que você percebe e absorve todas estas cenas, é quando você entende, finalmente entende, o quão curioso é a Vida.
Claro, o círculo não se completa sem um banho de pia no banheiro do aeroporto. Você nem imagina o quanto de felicidade um banho de pia pode trazer para o seu dia. Experimente, de preferência momentos antes do embarque, para aproveitar o ar-condicionado do avião para a secagem.
Davi Boaventura é o convidado especial desta terça-feira. O titular, Diego Damasceno, retorna na semana que vem
5 comentários
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janeiro 29, 2013 6:25 pm às 18:25
Lygia Roncel
adorei seu texto, Davi. poesia pura. dá um conto, heim. ;)
janeiro 29, 2013 6:26 pm às 18:26
Davi
Este blog é mesmo lugar de gratas surpresas. Tive vontade não de viajar, mas de dar uma esticada no aeroporto. É um mundinho diferente esse entre um tempo e outro. Não minto, ir ao 2 de Julho (é este o nome) e não tomar um ovomaltine me causa uma depressão tremenda.
janeiro 29, 2013 9:29 pm às 21:29
Hevellyn Corrêa
Já vi, e vivi, várias cenas sonolentas em aeroporto!
Lembro de uma situação muito bonita que assisti no aeroporto de Belém: uma jovem família de franceses (com a maior pinta de gringos mochileiros!) que se organizavam para dormir na gelada cadeira da sala de embarque. A mãe tentava agasalhar a criança de colo, enquanto o pai cobria a cadeira com uma toalha, depois que conseguiram deitar o enfant, que já embarcara no sono desde o colo materno, a mãe teve todo o cuidado de colocar uma roupa protegendo os ouvidos da criança contra os avisos sonoros do aeroporto, depois ela própria adormeceu segurando nas perninhas de seu pequeno, cabendo ao pai velar ambos os sonos.
janeiro 30, 2013 8:02 pm às 20:02
Daniela Stoll
Está aí alguém que gosta de atravessar o país! Adorei o texto, os detalhes, os bruxismos e os espasmos acumulados! E confesso: me matei de rir com as cabras!! Mandou bem!! :)
agosto 8, 2013 11:33 am às 11:33
O amor nos tempos da conchinha | O Purgatório
[…] o homem – só é superada por tocar violino dentro da mala de um fusca. Dormir no banco de um aeroporto é centenas de vezes mais […]