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Recordo com alegria e saudade aquele carnaval em que me atrevi a vestir a mortalha branca do afoxé Filhos de Gandhy.

Verdade que o par de tênis mal escondido debaixo da bata revelava-me um Gandhy muito do postiço, fajuto mesmo – um genuíno se reconhece pela inclemente percata branca atada ao solado brabo dos pés. Mas nem por isso deixei de distribuir cá meus colares, nem de gozar dos proventos prescritos aos fios do Tapete Branco.

Entre os quais o salvo-conduto tácito que permite ao filho de Gandhy – esse emissário da cordialidade entre desiguais que na Bahia achou-se chamar de paz – atravessar, sem maior resistência, os demais blocos avenida a fora. É um resfolego de diplomacia que remanesce no odioso carnaval baiano das cordas – essa infâmia privatista, essa materialização da condição oprimida em que vive o cidadão comum do lugar.

Pois foi tristemente entre cordas – entre cordas brutas de juta mal tingida de azul, pesadamente rastadas por braços mal pagos – que o Gandhy foi à Lavagem do Bonfim quinta passada. Ignoro se terá sido a primeira vez, ou se assim já têm ido há anos, mas pouco importa, a ignomínia é do mesmo tamanho.

E qual não foi minha surpresa quando ouvi, espremido no apertucho que sobra entre a corda e as fachadas do comércio da região, o cantor do Gandhy pedir pelo microfone a seus cordeiros que utilizassem “daquele jeito dócil que só vocês têm” para retirar do espaço cercado pela corda quem não estivesse vestindo a camisa paga do bloco, pelo bem da “beleza plástica de nosso desfile”.

“Governo da Bahia, terra de todos nós”, disse em seguida o mesmo homem ao microfone, louvando a quem graças a Deus “viabilizava” o desfile e a grande festa municipal. Para a seguir vociferar o bordão narcotizante: “Mas que Bahia linda!”

Pois a pena é essa: a pena é que o povo todo não acorde jamais para o fato de que não é nem grana nem governo nem diabo de ninguém que viabiliza coisíssima nenhuma. Quem faz cada festa, quem faz cada dia nesta terra nascer, é cada um e é o povo comum.

A pena é que não fechemos nunca nossa cara a esses mangangões que alugam a pouco preço as tradições que o povo inventa, para aí então promover suas figuras em troca de aplauso cordato, que é o que se usa fazer aqui há cem anos e mais.

Mas eu ia dizendo que foi quando o homem do microfone mandou o povo chispar de dentro da corda, aí é que a gente pegou e prucutum pulou lá para dentro, e caminhou um bom pedaço dentro do bloco mesmo, sem mortalha nem camisa comprada qual nada, e que ninguém nos tocasse porque não éramos assim tão poucos.

Foi em tempo de ouvir um fulano dentro do bloco reclamar que ópraí nem adianta a gente pagar para ir tranquilo aqui dentro da corda, que vem esse povo e invade, e que isso e aquilo e mais aquilo outro.

Não gosto de desejar mal a ninguém, mas olhe, meu amigo: que lhe doa no bolso. Que lhe doa muito nesse seu raio de bolso, que é para ver se ano que vem você larga mão dessa besteira de comprar espaço na rua na mão de quem não é dono dela.

Era isso. E ajayô.

Ricardo Sangiovanni escreve aos domingos

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