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* A equipe de O Purgatório está de férias até o dia 13 de janeiro. Até lá, republicaremos diariamente uma seleção dos melhores textos de nossos colunistas ao longo de 2012. A todos, um bom 2013!
Observador, Carlos Alberto – desde pequeno apelidado Micose, verdade que muito a contragosto – descobriu por fim que eles, tão misteriosa quanto ordenadamente, não se repetem.
Pois nem o suor de calor dos infernos, nem o esmago diuturno entre bundas e sovacos, nem o barulho tremelicante da lataria sobre o chassi, nem o plástico duro rachado dos assentos beliscando-lhe caceteoso a carne da coxa – pois nem nada disso impediu-lhe de ver, de contar e anotar e descobrir.
Não se repetem porque se revezam, concluiu Carlos Alberto, os responsáveis pelos telefones celulares, players e/ou rádios ligados nas alturas nos coletivos da cidade.
Porque em mil viagens de ônibus contabilizadas – todas elas sonorizadas, total ou parcialmente, pelos outrora irritantes (por inconvenientes) deejays-de-busú, sustenta Micose, mostrando palitinhos riscados numa folha avulsa de caderno amassada – notara que em nenhuma uma vez o sonoplasta havia sido o mesmo de qualquer dos dias anteriores.
E como lhe sobrassem astúcia e industriosidade, Carlos Alberto entendeu. (Não era grande sabedor de coisas, o Micose, mas que o acaso puro não existia, disso jamais duvidara.)
Apois descobriu o moço, sozinho e de próprio tutano, tratar-se de secreta confraria. Se por ideologia das brabas ou só por mera aldrabice, isso depois se veria. O caso era que os deejays-de-busú (brilhante, Carlos Alberto!) integravam uma imensa e viral, uma silenciosa e subcutânea rede, que dia após dia se manifestava e expandia, afeita ao projeto (tácito ou explícito) de desestabilizar, sorrateira, os nervos dos cidadãos ditos de bem.
Genial, Carlos Alberto pensou. Porque afinal bastava um nada a quem quer que quisesse um dia fazer parte daquela gangue (daquele sentimento), assumir-se para-raios daquela torrente de poder coletivo.
Bastava pois apenas apossar-se de si, buscar no fundilho de si a potência redentora de todas as misérias, de todos os suores, de todos os apertos e sovacos e bundas, de todos os tremeliques e beliscos de coxa. De todas as micoses.
Já se encaminhava silencioso o desfecho da milésima primeira viagem quando, a quatro paradas do ponto final, Carlos Alberto tateou a perna traseira da calça. E catou o celular no fundo do bolso. E pôs música nas alturas para tocar.
É que seu dia chegara, por fim – azar de quem se incomodasse.
E dali para frente, resolveu, nunca mais atenderia a quem lhe voltasse a tratar por Micose.
Ricardo Sangiovanni escreve aos domingos (texto publicado originalmente em 04/03/2012)