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Era alguns minutos depois de regadas as plantas do quintal que ela mergulhava os dedinhos na areia úmida, enchia a mão em concha e levava até a boca. Sempre quase no mesmo horário, a mãe, austera e delicada, aparecia na porta, mangueira a postos, e fazia a folia de jasmins, rosas, alecrim, graxa, capim, mato, laranjeira, e até do pé de siriguela. Não tinha distinção.
Molhar as plantas era um ritual que Mimica acompanhava com se saciasse a sua própria sede. Quatro aninhos, se escondia entre uma planta e outra e observava o jato de água, amoroso, a bater, respingar, criar pequenos arco-íris no quintal cercado em parte por muro e em parte por arame.
Quando o banho matinal das plantas acabava – sempre durava por volta de 4 minutos – e a mãe dava as costas para o mundo de Mimica, ela se desembrenhava, corria para o centro do quintal, e a quentura adormecida na areia dali subia e conferia à terra um cheiro irresistível. A umidade era o recheio do bolo e Mimica aspirava a delícia, respirava fundo, a cabecinha virada pra cima, o sol cutucando a fronte.
Aí então, era batata: olhava ao redor e escolhia o pé de alguma planta. Chegava perto, agachava, os joelhos em contato direto com a terra, enchia a mão de um bocadinho e colocava na boca. A saliva se misturava com os grãos, a língua ficava meio perdida entre gosto de terra e de algo mais, e Mimica saciava a própria sede – ou seria fome? – colocando um pedaço do quintal na boca.
O ritual da mãe era um. O dela era outro. E, claro, era feito muitíssimo às escondidas, até porque – ela tinha apenas quatro anos, mas já percebia – ninguém fazia aquilo. Ninguém andava por aí metendo a mão na terra e colocando na boca. Mas tanta gente fazia tanta coisa que ela achava feio!
Jandir, pai de Tonico, vizinho de parede, vivia dando uns puxões de orelha sem tamanho no amiguinho que tinha sua idade. Ele chorava pra se acabar. Marta, amiga da mãe, sempre que a visitava, adorava dar uns apertões doloridos na bochecha de Mimica e ela não via adulto fazendo isso em adulto. André, seu irmão mais velho, várias vezes dizia que tinha lavado a mão para comer, sem ter lavado. E a mãe brigava tanto quando não lavavam as mãos antes de comer!
O que é que tinha ela comer um punhadinho de terra?
Manhã seguinte, mãe, mangueira, água, arco-íris, porta, meio do quintal, umidade, joelho no chão, mão em concha, punhadinho de terra, desejo…
– Mimicaaaaaaaa! O que é isso?! Onde já se viu colocar terra na boca?!
A mãe esbravejava. Mimica, os olhos voltados para o chão, ruborizava a cada repreensão e esfregava as mãozinhas sujas de terra, disfarçadamente, pensando em minimizar o flagra. Que criança comportada não faz isso, que a areia é coisa suja, que isso, que aquilo. O tempo de regar as plantas a mãe gastou multiplicado por dez só de carão. E no final da ladainha toda, quando até as plantas já estavam com pena de Mimica, a mãe resolveu perguntar o porquê.
– Tem gosto de siriguela, mamãe. E também gosto de rosa.
Carmezim escreve às quartas-feiras