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Undira Fratel. Era esse o nome da professora de português e literatura da minha turma na Escola Técnica Federal, idos dos anos 90. Baixinha e invocada – só agora percebo que todas as minhas professoras de português eram baixinhas e invocadas, desde Tia Vanda que me alfabetizou – marcava presença no ambiente em que estava com sua grandiloquência verbal, seus gestos exagerados e seu tom de voz estridente. Concentrava todos os olhares para si, como no dia em que desancou a criticar Jorge Amado na sala.
Justificava sua opinião dizendo que o autor baiano reduzira a Bahia a um punhado de prostitutas, bêbados, degredados e ladrões que se esbaldavam numa terra onde a lascívia e a esculhambação ditavam a ordem e o sentido dos fatos. Que isso servira de porta de entrada para o turismo mal intencionado, que a imagem da Bahia fora deturpada pelo autor… Et cetera e tal. Com quatorze anos completos eu ainda não havia lido Jorge Amado. Enxerguei ali, naquele discurso depreciativo, um grande incentivo.
Nesse mês de agosto completou-se o centenário do nascimento do escritor, com muitas loas públicas, exposições, releituras televisivas, shows comemorativos. Tudo muito justo. Não sei por onde anda minha professora do ensino médio, nem o que ela acha disso tudo, mas após ler alguns romances do itabunense – leio no momento O Sumiço da Santa – já me permito discordar da minha antiga mestra. Jorge Amado não reduziu a Bahia, nem criou o universo baiano [como muitos atribuem]. Ele deu um enquadramento particular que permitiu, a partir daí, desenrolar estórias que ajudam a compreender o baiano [gentílico]. O universo amadiano não é completo sem as canções idílicas de Caymmi ou os traços marcantes de Carybé. São complementares. Pode caber a Jorge a dura tarefa de retratar a face menos nobre, talvez mais interessante, certamente mais controversa. É legítimo, pois é um universo que brota das ruas, possui um valor histórico [que só compreendemos com o tempo], é realidade romanceada sem medo de estereótipos. Melhor ainda, é usar os arquétipos como recurso para eternizar uma era, um mundo. A popularização de seus tipos – e a identificação do povo nele – denunciam o acerto de sua prosa.
Outro monstro sagrado na arte de retratar tipos a partir da observação mundana, o dramaturgo Nelson Falcão Rodrigues, também atinge a histórica data centenária hoje. Não irei me alongar no panegírico ao mestre pernambucano por dois motivos: Falta-me o evidente talento que faça jus à figura do anjo pornográfico, e assim como Machado de Assis e Rubem Fonseca eles fazem parte da tríade que mais admiro no universo das letras, a ponto de impor a regra de nunca emprestar, a quem quer que seja, livros desses três autores.
Sobre o universo rodriguiano, entretanto, é possível dizer que ele está situado em algum lugar entre as hipérboles pernambucanas, as tragédias policialescas, o moralismo suburbano carioca e o amor não consumado. Temperado com a grandiloquência dramática que imprime à vida uma teatralidade rocambolesca. A vida, na acepção rodriguiana, precisa de adjetivos para se tornar suportável.
Jorge e Nelson foram capazes, cada um de sua forma, com suas armas, de traduzir para a eternidade o mundo que os circundava, inserindo e realçando os aspectos que o tornavam particulares e intrigantes. Foram além da simples tarefa de criar, inventar. Perpetuaram-se usando a capacidade de observar e delinear os traços da realidade que muitos teimam em não enxergar, como minha professora Undira.
Para enxergar o mundo como ele é, é preciso olhar pelo buraco da fechadura como um menino. E não ter vergonha de contar o que viu.
Alex Rolim escreve às quintas-feiras