Nela, Dorival conta a Jorge que “o tempo que tenho mal chega para viver”, razão pela qual ele, ultimamente, não vinha pintando tantos quadros quantos gostaria. E sem os quadros, que poderia vender, deixava de ganhar uma fortuna.
Enumero as atividades que consumiam tanto assim o tempo de Caymmi: 1. visitar Dona Menininha; 2. saudar Xangô; 3. conversar com Mirabeau; 4. se aconselhar com Celestino sobre como investir o dinheiro que ele não tinha e nunca teria, graças a Deus; 5. ouvir Carybé mentir; 6. andar nas ruas; 7. olhar o mar; 8. não fazer nada.
A carta está publicada na exposição que Jorge Amado estrela no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, e foi transcrita pela jornalista Tatiana Mendonça, nossa enviada especial para cobrir a exposição.
Na introdução de seu texto, Tatiana conta que “fiquei muitos minutos parada só olhando para ela [a carta], lendo e relendo, para tentar entender quando foi mesmo que, com essa pressa compulsiva por eficiência, a gente desaprendeu a viver”.
A reflexão de Tatiana é singela e aparentemente desprovida de maior malícia – afinal, uma gota a mais de maquiavelismo e ela talvez se tivesse autocensurado.
A reflexão de Tatiana, singela e aparentemente desprovida de maior malícia, é a reflexão de muita gente – pois ele seguiu por duas semanas diariamente figurando como nosso mais lido.
A reflexão de Tatiana, singela e aparentemente desprovida de maior malícia, é também a minha. De maneira que me impus a tarefa de ajudá-la na tentativa de “tentar entender quando foi mesmo que (…) a gente desaprendeu a viver.”
Pois o rastro mais radical do estopim deste triste e longevo “quando” que apurei até o fechamento desta edição, caríssima Tatiana, encontra-se no relato do francês Jean de Léry “Viagem à Terra do Brasil”, publicado pela primeira vez em 1578.
Léry visitara o Brasil numa expedição de protestantes franceses à França Antártica, colônia que a França teve no Brasil entre 1555 e 1560. Ficava na baía de Guanabara, onde hoje está a cidade do Rio de Janeiro.
No livro, ele relata uma conversa – que entendo ter sido interessantíssima – tida com um ancião tupinambá, uma das muitas linhagens tupi que habitavam o litoral brasileiro.
Conta o francês que o velho, admirado de ver a quantidade e rapidez com que os estrangeiros extraíam e transportavam o pau-brasil em naus e mais para a Europa, e ademais sabedor do sofrimento que lhes custava a travessia do oceano, achegou-se-lhe e indagou:
“- Por que vindes vós outros, maírs e perôs [franceses e portugueses] buscar lenha tão longe para vos aquecer? Não tendes madeira em vossa terra?”
Léry então responde que madeira havia sim, e muita, mas não daquela qualidade. E que aquela não era para queimar, mas para extrair tinta para tingir tecidos de algodão e plumas.
“- E porventura precisais de muito?”
E Léry responde-lhe que sim, porque lá há tantos negociantes que às vezes um só deles chega a comprar todo o carregamento de madeira trazido por vários navios.
“- Mas esse homem tão rico de que me falas não morre?”
(Me parece belíssima a intriga do velho tupinambá; chego a visualizar-lhe as dobras do cenho franzido)
Responde Léry novamente que sim, que os homens ricos de lá morrem sim.
“- E para quem fica o que deixam?”
Para os filhos ou, na falta destes, para os irmãos ou parentes próximos, responde o francês.
Do que o índio arremata (transcrevo-lhes para, em seguida, despedir-me):
“Agora vejo que vós outros maírs sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis grandes incômodos, como dizeis quando aqui chegais, e trabalhais tanto para amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem! Não será a terra que vos nutriu suficiente para alimentá-los também? Temos pais, mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos de que depois da nossa morte a terra que nos uniu também os nutrirá, por isso descansamos sem maiores cuidados.”
Arrisco que é desde esse tempo, minha querida Tatiana, que tudo tem sido desaprender a viver.
[A referência ao livro de Léry não é direta, mas via Darcy Ribeiro em seu “O Povo Brasileiro”; resta-nos confiar na tradução original, muito embora persista a curiosidade de saber em que idioma – ou linguagem – se deu a conversa]
Ricardo Sangiovanni escreve aos domingos
4 comentários
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julho 15, 2012 10:39 am às 10:39
Eduardo Sarno
Li recentemente que os esquimós acordam bem devagar, sem pressa, aos poucos, parte por parte. Eles consideram que possuem tres almas adormecidas, e que um acordar brusco pode perturbá-las.
Os indios imitam a natureza, fazem tudo integrado, nada de movimentos bruscos que possam quebrar esta simbiose primitiva com a natureza. É uma filosofia de vida que antecedeu a de Masi.
O europeu, ao contrário, bota pra quebrar, cortar, destruir.
Do ponto de vista dos indios, as atitudes dos europeus sempre foram uma loucura total, conseguem destruir, a um só tempo, o passado, o presente e o futuro.
Quanto à lingua acho que foram os jesuitas os primeiros a servir como intérpretes. No caso dos franceses, protestantes, pode ter sido algum aluno dos jesuitas.
abs
julho 17, 2012 9:02 am às 9:02
Ricardo Sangiovanni
Valeu, Edu! Abs!
julho 16, 2012 11:04 pm às 23:04
Tatiana Mendonça
o melhor é essa cena da transcrição :)
julho 17, 2012 9:05 am às 9:05
Ricardo Sangiovanni
não é? :)