Ontem, 2 de julho, foi o dia de comemoração às lutas de independência da Bahia, de cujo desfecho se conta um pitoresco episódio, protagonizado por um soldado do baixo escalão da tropa brasileira: o corneteiro Lopes.

Dizque o exército nacional estava à beira de perder a luta que, posteriormente, ficaria conhecida como a Batalha de Pirajá, e, por isto, o major mandou que Luís Lopes, o corneteiro do front, desse o sinal para a retirada. Não se sabe por que diabos o corneta fez ressoar o toque de avançar. Desastre? De modo algum: o imbróglio levou à debandada geral do inimigo, crente que o som belicoso anunciava a chegada de reforços para o lado brasileiro. Assim vencemos.

Entre os que julgam esta história inverídica, há quem ressalte um possível deboche da historiografia do Sudeste para com o papel dos nordestinos nas lutas independentistas. Mas não quero enveredar por aí. A meu ver, o causo do corneteiro Lopes tem o gostinho de parábola sobre como nós, brasileiros, não nos damos com o heroísmo político.

Somos um país sem dirigentes heróis, entendendo-os aqui como figuras de liderança, de valores elevados e infalíveis. Com efeito, tivemos e temos pessoas excepcionais, filhos da terra responsáveis por grandes, grandiosos, grandessíssimos feitos, mas ninguém que emane a aura sobre-humana de um Dom Sebastião, de um Bonaparte; ou que encarne a hombridade e a austeridade de um Thomas Jefferson, de um Che. E, se não encarnam tais características, é porque, no fundo, não deixamos, não nos predispomos a tanta consideração.

Não é que nos orgulhemos, que gostemos desta condição de descrentes. A ingenuidade de esperar o messias da república ainda nos toca. Mas não plenamente.

O porquê da hesitação talvez se relacione com o soerguer-se de nossos modos de convívio sobre as bases do patriarcado do senhor de engenho — o primeiro arranjo social do Brasil, lá dos tempos do açúcar, da casa-grande & senzala. Note-se que a figura desta autoridade-mor passa longe da virtude e da nobreza; ao contrário, ela é sádica nos seus mandos e desmandos a todos a seu redor; é voluptuosa; é glutona e sem modos. O convívio tão íntimo nos mostrou que correção de caráter não é condição sine qua non para exercer-se o poder e demandar-se o respeito e admiração dos demais (como dizem por aí: intimidade é uma merda). Desde então, ficamos cabreiros quanto aos nossos líderes.

A tal desconfiança se deve o fato de não nos surpreendermos por mais de alguns segundos ao ver as humanas imperfeições dos nossos dirigentes, ou de nos resignarmos ao vê-los apertando a mão do diabo. Do mesmo modo, nunca confiamos plenamente no seu discurso salvador e mantemos o ceticismo quanto à sua capacidade de ação, que promessas são preces, e o pastor tem sua vida para cuidar, olhar o rebanho não é tudo.

Toda esta prosa pode parecer muito pessimista e talvez até o fosse algumas décadas atrás, quando éramos mais homens cordiais, menos inexperientes no ofício da cidadania — mas hoje, não. Quero crer que não; que, longe disto, a nossa incapacidade de heroicizar pode ser um trunfo. Se a aceitarmos, pode ser que o pessimismo minore e que ganhemos motivação para, em vez de esperar o aparecimento do governante herói, debruçarmo-nos nós mesmos, juntos com quem elegermos neste ano, sobre os problemas comuns, com o incentivo de saber que não precisamos ser sobre-humanos para resolvê-los, pois que até um pobre e esquecido corneteiro, sozinho, já venceu uma guerra.

Breno Fernandes é o convidado especial desta terça e da próxima. Diego Damasceno, nosso titular das terças, tirou umas férias