Vinte e nove de fevereiro não é todo ano, ele pensou ao acordar. Passou a mão nas costas, cruzou as pernas ainda sentado na beira da cama, puxou o maço de cigarros do criado-mudo. Na primeira tragada sentiu tontura. Olhou para o relógio digital, três e quinze da manhã. “Insônia, insônia minha, maldita companheira das altas horas”. Trouxe os chinelos pretos para perto de si com os pés, espreguiçou-se, voltou a sentar na cama. Coçou as costas mais uma vez. Na parede do quarto desarrumado uma cópia de um quadro de Monet. Ao cruzar com a mãe no corredor do apartamento assustou-se com o susto que ela tomou. Como podia ter deitado horas atrás e acordado daquele jeito, ela questionou. De que jeito, ele retrucou. Assim, com essa pele…colorida! Acendeu a luz do corredor, a lâmpada amarela deu à pele uma coloração alaranjada. Ele se tocava, a mãe insistia que era preciso ir ao hospital e que era preciso cobrir todo o corpo porque as pessoas nas ruas, ah!, as pessoas nas ruas. Hoje é 29 de fevereiro, mãe, e é possível sair na rua sem que as pessoas percebam que estou com a pele colorida. O colorido era bastante irregular, como se chumaços de algodão tivessem sido mergulhados na tinta e chamuscado sobre a pele. Apele, apele, apele, ele repetia debaixo da água do chuveiro, esfregava o cotovelo, o pescoço, as nádegas, nenhum pingo de tinta saía na bucha. Mãe, você não tem um irmão que nasceu no dia 29 de fevereiro? Por que não posso ter acordado com a pele assim? Ter nascido no dia 29 de fevereiro é quase a mesma coisa que acordar revestido de cor, único, exclusivo. Não foi bem o que pedi antes de dormir, mas se veio assim, assim será e ficará. A mãe gritava o pai ao telefone, dizia que viesse, que o mundo estava se acabando, que o filho estava brilhando e o pior, o pior!, estava achando tudo aquilo nooooormal! Dentro do quarto, o rapaz percebera o momento que a chave girou no trinco, trancando-o. Não se manifestou: que fosse trancado, de nada valia, porque a cor da pele, aquela cor da pele, havia de transpor o muro do quarto, havia de perdurar. Afinal, quando percebeu a assinatura de Monet no seu próprio calcanhar pensou que a arte tinha seus segredos de renovação. Era 29 de fevereiro e tudo era possível.