-Tio, cadê o camelo?
Domingo de carnaval, Campo Grande, 20h30. Aquela criança de branco, presa ao pai por uma faixa azul amarrada ao braço me pergunta com a sagacidade pueril que só os bêbados e petizes desferem nesses momentos. Dentro do meu turbante, a cachola trabalhou na velocidade que a mistura de álcool inebriado pelo doce aroma da alfazema permitia. Difícil precisar meu tempo de resposta. Ela saiu. Trôpega como minha convicção:
– Não teve camelo esse ano. Nem tigre, nem elefante. Vou procurar saber o porquê.
A curiosidade do párvulo só reacendeu a dúvida que me atormentava desde o início do desfile. Cadê o diabo do elefante? A alegoria que ficava a frente do trio era ponto de referência para encontrar a minha patuscada. “A gente se reúne na bunda do elefante”, alertava meu primo. “Melhor na bunda que na tromba” zombeteava em resposta. Sem elefante, sem tigre, sem camelo (na verdade era dromedário), sem o pôster gigante de Raimundo Queirós (o sósia de Mahatma que morreu em 2006) ficou complicado encontrar alguém da turma naquele tapete branco de oxalá. Isso nem era o mais importante. Era só mais uma faceta do processo de descaracterização do afoxé. Um processo que se consolida a cada carnaval.
“Afoxé não é escola de samba. Não é trio elétrico. Não é frevo. Não é marcha. É afoxé” vaticina Gilberto Gil. Esse conceito talvez esteja tão ultrapassado quanto o próprio Gil, pelo menos na visão diligente de Daniela Mercury. A administração do Gandhy, entretanto, se esforça para adequar o bloco ao modelo do carnaval. “Não temos mais espaço no bloco para as alegorias. Precisamos de pessoas para empurrar os carros e isso dificulta a movimentação” me explicou na terça feira, pouco antes do início do desfile, o professor Agnaldo Silva, presidente do bloco há mais de uma década.
Durante o longo mandato de Agnaldo, muitas mudanças foram implementadas, o que abalou o prestígio dele com os associados mais antigos. “Uma palhaçada essa ala de dança na frente do bloco. Pra quê isso? Nunca teve isso! Isso são filhos de diretores querendo aparecer” esbravejava um senhor, 29 carnavais dançando ijexá na avenida.
A saída na terça de carnaval teve discurso acalorado antes de soarem os clarins. Um diretor, de cima do trio, prometia providências para acabar com as “cortesias”. Isso porque parte das fantasias são subsidiadas por incentivo do governo para baratear o custo. No entanto, essas fantasias são distribuídas entre membros da atual gestão que as vendem fora da sede. Isso diminui a associação de novos membros, inflaciona o preço do carnê e permite cada vez mais a participação de foliões que não conhecem o caráter sócio-cultural da associação. No bloco esse ano tinha até prefeiturável – nos atuais tempos, um sinal claro de mau agouro.
Bastões infláveis coloridos manchando o tapete branco, carro de apoio vendendo cerveja do patrocinador (antes era proibido uso de bebida no bloco), desfile no circuito da Barra, são apenas algumas das mudanças que o bloco sofreu nos últimos 15 anos. Adequação à nova ordem em contraponto à tradição.
Por isso é difícil exigir algum tipo de respeito por parte dos artistas. Bell não pode esperar o afoxé passar, Ivete cola a corda no bloco da frente, para não dar espaço, e Daniela fica na Barra porque não pode esperar o Gandhy tocar por sete horas – mesmo que seu último grande sucesso tenha sido uma música que faz referência ao bloco. O que faz o Gandhy então? Sobe a Carlos Gomes em hora e meia, num ijexá elétrico, antecipa sua saída para não atrapalhar os horários e se assemelha cada vez mais a um bloco qualquer. Até os cânticos em iorubá e nagô vão sendo substituídos por músicas atuais.
“Em uma assembléia de animais, um macaco se levantou e pôs-se a dançar. Sua dança agradou a todos e não faltaram elogios. Invejoso, o camelo quis também fazer sucesso. Levantou-se e pôs-se a dançar. Mas suas contorções indignaram os animais, que o expulsaram a pauladas.”*
Descobri, garoto: o camelo tá dançando.
*Fábula de Esopo – Que viveu no século VI a.C
Alex Rolim é o convidado especial dos sábados de fevereiro
8 comentários
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fevereiro 26, 2012 7:46 am às 7:46
Ari Coelho
Texto delicioso e absolutamente real.
fevereiro 26, 2012 12:24 pm às 12:24
Manuela
Ô gente, a pobre da Daniela não já berrou aos 4 ventos que é mentira essa historinha aí do Terra?!
Dá uma trégua!
fevereiro 26, 2012 11:03 pm às 23:03
Alex Rolim
A negativa dela pareceu tão sincera quanto amor de sogra. Ademais, nenhum dos outros envolvidos [haviam muitas pessoas no estúdio], negou o teor da conversa. Mesmo em off, no jornalismo se há três boas fontes que confirmam… Publique-se. Não é fofoca.
fevereiro 27, 2012 6:52 am às 6:52
edmwilson
O pior cego…
fevereiro 27, 2012 10:01 pm às 22:01
fabricio kc
Assinei o blogue por conta deste texto! Reflexão fundamental.
“La liquidación comercial de la cultura es sólo un aspecto del proceso vertiginoso de disolución de la experiencia humana y de la realidad.”
Li esse trecho num artigo recente por aí, revelando um caso sintomático resultante do crescente domínio da administração comercial da cultura.
Acho que a sua crônica contribui para aproximar essa discussão de nosso lugar, de nossos olhares..
Valeu!
fevereiro 28, 2012 11:05 pm às 23:05
Ricardo Sangiovanni
Legal que acompanhe o blog, Fabrício. Abs!
março 1, 2012 2:18 pm às 14:18
Alex Rolim
Bem vindo Fabrício. Encontrará bons textos aqui.
fevereiro 14, 2013 7:11 am às 7:11
Entrudo que reluz é ouro « O Purgatório
[…] para mais um triênio [o quinto consecutivo] uma atitude forte foi tomada – algo já cobrado nesta tribuna – contra as cortesias. Com menos fantasias para não-sócios fora da sede foi perceptível a […]