Quando menos esperava, o menino chegou à porta, 10 anos depois, roupa colada ao corpo, justa. Tinha os olhos fundos na cara, olheiras, cara pálida.
– Vim dançar pra você.
Arreou uma pequena sacola de lado, acomodou também uma pequena vasilha com restos de pão, uma garrafa de água e dois caroços de alguma fruta difícil de identificar. A peça de roupa era toda uma só, como um macacão colado ao corpo.
– Vim dançar pra você, pai.
O pai, a mãe, a irmã largaram os talheres. As expressões pairaram surpresas sobre a mesa, o prato quente esfumaçava, o prato vazio do menino havia sido retirado. De nada adiantava colocar o prato para um fantasma, sugeria o pai. Após anos a fio de insistência, a mãe resignou-se. O menino não voltaria.
E ali estava ele.
A boca continuava rosada, os pés chatos, a cintura fina, os ombros largos. Mais largos do que nunca. A mãe, entre um espasmo e um engasgo, balbuciou um “não acredito”, a irmã sentiu tremer o tronco, um fio de alegria costurou as almas femininas da casa.
O pai e uma porta não se diferenciavam.
O menino esticou o pé, levantou a perna até que o joelho tocou-lhe a fronte, abaixou sem tremer, sem pestanejar, sem gemer, sem que seu rosto transparecesse qualquer sinal de esforço. Rodopiou, agachou, dançava uma música imaginária, singrava a ante-sala, arqueava os braços, apontava para o teto. Era balé, em pura substância.
As veias e artérias do pescoço do pai se alteravam. As têmporas palpitavam.
O menino parou, o peito arfante, o braço esticado, suplicante, quase tocando o rosto do velho.
– Não era pra ser assim, meu pai.
– Seu prato volta pra mesa, mas você tem que tirar essa roupa.
– Não posso, pai. Tem dez anos que ela é minha pele.
O pai deu as costas. A mãe soluçou, a irmã correu para abraçar o menino, agora já grande.
Carmezim escreve às quartas-feiras
4 comentários
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fevereiro 15, 2012 11:19 am às 11:19
Fernanda
Adoro a beleza existente nas pequenas tragédias das suas historias. Parabéns!
fevereiro 15, 2012 11:42 am às 11:42
Carmezim
Muitas coisas lindas moram nas pequenas coisas, não é? E muitas tragédias também! Que bom que gostou!
Volte sempre!
Carmezim
fevereiro 15, 2012 11:25 am às 11:25
Bete
Uau Vitor! é duro mas quase sempre é verdade não é?
Adorei! òtimo!
fevereiro 15, 2012 11:44 am às 11:44
Carmezim
É, a verdade muitas vezes se reveste numa dureza quase insuportável. Mas é preciso encará-la! E sublimá-la quando necessário!
Obrigado!