Quando menos esperava, o menino chegou à porta, 10 anos depois, roupa colada ao corpo, justa. Tinha os olhos fundos na cara, olheiras, cara pálida.

– Vim dançar pra você.

Arreou uma pequena sacola de lado, acomodou também uma pequena vasilha com restos de pão, uma garrafa de água e dois caroços de alguma fruta difícil de identificar. A peça de roupa era toda uma só, como um macacão colado ao corpo.

– Vim dançar pra você, pai.

O pai, a mãe, a irmã largaram os talheres. As expressões pairaram surpresas sobre a mesa, o prato quente esfumaçava, o prato vazio do menino havia sido retirado. De nada adiantava colocar o prato para um fantasma, sugeria o pai. Após anos a fio de insistência, a mãe resignou-se. O menino não voltaria.

E ali estava ele.

A boca continuava rosada, os pés chatos, a cintura fina, os ombros largos. Mais largos do que nunca. A mãe, entre um espasmo e um engasgo, balbuciou um “não acredito”, a irmã sentiu tremer o tronco, um fio de alegria costurou as almas femininas da casa.

O pai e uma porta não se diferenciavam.

O menino esticou o pé, levantou a perna até que o joelho tocou-lhe a fronte, abaixou sem tremer, sem pestanejar, sem gemer, sem que seu rosto transparecesse qualquer sinal de esforço. Rodopiou, agachou, dançava uma música imaginária, singrava a ante-sala, arqueava os braços, apontava para o teto. Era balé, em pura substância.

As veias e artérias do pescoço do pai se alteravam. As têmporas palpitavam.

O menino parou, o peito arfante, o braço esticado, suplicante, quase tocando o rosto do velho.

– Não era pra ser assim, meu pai.

– Seu prato volta pra mesa, mas você tem que tirar essa roupa.

– Não posso, pai. Tem dez anos que ela é minha pele.

O pai deu as costas. A mãe soluçou, a irmã correu para abraçar o menino, agora já grande.

Carmezim escreve às quartas-feiras