Sabe essas pessoas cuja personalidade é de um humor leve e teatral, que falam sorrindo, não importa o assunto? Pessoas que falam bobagens tão bobas e agradáveis sem medo algum, e que no meio do riso soltam a língua para fora da boca por alguns instantes e a recolhem, num gesto de auto-reprovação ligeira e gozadora? É sempre um aprendizado encontrá-las.

Pois a ultima que eu vi, e em quem pude observar essas características aí, foi o filosofo Jean-Marie Schaeffer, numa ocasião não menos, digamos, filosófica: um curso oferecido pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, cujo nome é “A criação artística 2” – atenção para o « 2 » – e cujo assunto é a literatura de James Joyce e o foco, Finnegan’s Wake.

Pois que Schaeffer, com estudos teóricos em literatura, estética, linguística, história e cinema publicados, seja assim lépido, fagueiro e lhano no trato, já espanta e valeria uma crônica. Porque poucas coisas podem ser mais repelentes e pomposas do que um seminário em uma escola de altos estudos sobre a obra mais radical de um dos mais ousados escritores do século XX.

Apesar de gostar realmente de um dos livros de Joyce, O retrato do artista quando jovem, que nada tem de excludente, estou nesse curso por questões de calendário. E só descobri que era sobre Joyce no primeiro dia.

Mas a descoberta vai além.

Joyce, grosso modo, tinha um projeto: unir literatura e vida. Mundo e arte seriam um fluxo só, e essa é a porta da frente de outro livro de Joyce, Ulisses, cuja historia acompanha, detalhada, detida e criativamente, um dia na vida do irlandês Leopold Bloom. Ao fim das 882 paginas, a impressão é de que a vida humana é tao rica em nuances que a exploração completa de um único dia de uma única pessoa não caberia nem num livro cem vezes maior (o que também prova que Ulisses é o perfeito oposto do Big Brother Brasil).

O fluxo é também o ponto de onde começa Schaeffer. Esbanjando simpatia (o clichê é intencional), ele explicou outro dia que desde uma conversa com um taxista na Suíça até um empréstimo das ideias do filósofo Giambattista Vico fazem parte de Finnegan’s. A matéria do fluxo, até onde eu entendi, seria a linguagem, pois para Joyce não havia (ou não deveria haver) hierarquia entre palavras. Linguagem culta e linguagem popular seriam dois nomes insuficientes, e no fundo designariam partes interdependentes de uma coisa só.

Talvez se inscreva nessa ideia o fato de que Finnegan’s tenha sido escrito com vocabulário de mais de 60 línguas diferentes: o fluxo conectaria não apenas o léxico e o calão do inglês, mas o irlandês com o francês, o ocidente com o oriente, línguas mortas com dialetos obscuros e invenções.

Não à toa, o livro foi batizado inicialmente Work in progress, e que sua primeira palavra, « riverrun », conduza a rio, movimento e ciclo.

Mas quando tudo parecia inalcançável e sonolento, eis que Schaeffer consegue fazer funcionar o audio do seu comptador (três tentativas nas últimas cinco aulas, sem sucesso) – e o que escutamos é o proprio James Joyce, numa gravação ruim, ler um trecho de Finnegan’s.

O mais impressionante foi que não havia nada de impressionante. Joyce lia como se lê um jornal, e Schaeffer não teve muito mais o que acrescentar – o ensinamento estava ali: Finnegan’s pode ser intraduzível, mas é perfeitamente legível. Livro da linguagem, é um inimigo do silêncio, comparsa da voz alta e teatral. Suas camadas de mistério se revelam a partir da pronúncia. Assim uma palavra inventada, quando lida, pode revelar um som que corresponde a um significado, em uma língua qualquer; ou então, duas palavras estrangeiras postas em sequência levam a um sentido num dialeto.

Joyce fez um livro sonoro, que se mostra quando “dito”, ao invés de apenas lido. Sem empáfia nem afetação, Finnegan’s é para ser lido como lê uma criança, demonstrou Joyce. Ler com olhos e boca – dando língua a intervalos, podia ter acrescentado Schaeffer.

Diego Damasceno escreve às terças