Foi curioso que, no mesmo dia em que assisti a esta ótima palestra do TED de Chimamanda Adichie (vale cada minuto, vejam), li também o texto de Gilberto Dimenstein na Folha de S. Paulo que dizia, para efeitos retóricos mais que argumentativos, que “Salvador é uma mentira”.
Adichie, uma escritora nigeriana, fala sobre como conhecer uma narrativa única a respeito de um povo, nação, região, religião ou sobre qualquer “outro” nos torna sempre menos abertos ao diálogo e mais preconceituosos. Ela percebeu isso no tratamento que recebia por ser africana quando morava nos Estados Unidos e percebeu também em suas próprias noções sobre os mexicanos, ao visitar o país.
Em seu texto, Dimenstein comenta uma série de coisas que tentam construir apressadamente um discurso sobre a decadência de Salvador, que começaria na fuga de cérebros, passaria pelo desleixo com a cidade e terminaria na violência causada pela atual greve da Polícia Militar.
Seria possível discutir o pouco aprofundamento do texto em sua própria argumentação ou os exemplos de comparação mal ajambrados e mal explorados. Mas a verdade é que partilho da preocupação do escritor com todas estas questões e lamento profundamente a existência delas.
Mas acho que o que deve entrar em discussão é a premissa a partir da qual Dimenstein escreveu sobre a cidade. Para mim, que havia acabado de ouvir Adichie, ela reúne alguns dos elementos que fazem parte da história única da Bahia. Dimenstein diz que é “de uma geração que via em Salvador a terra da felicidade e da criatividade por causa de gente como Gil, Caetano, Glauber, Jorge Amado, Verger, Bethânia, Gal, João Ubaldo, e por aí. Essa imagem de alegria e da descontração ficou por causa do majestoso Carnaval de rua.”
O acontecimento da greve da polícia e a violência decorrente dele, para o escritor, comprovam que a tese da criatividade, da felicidade, da alegria, da descontração e do Carnaval de rua majestoso era mentirosa. Cai o pano e Salvador se revela tão somente como uma cidade feia, suja, violenta, intransigente, excludente e que afugenta seus melhores.
Entre as inúmeras coisas interessantes que Chimamanda Adichie diz em sua palestra está a de que a história única cria estereótipos, mas que “o problema com os estereótipos não é que eles são mentira, e, sim, que eles são incompletos”. Desde que foi alçada ao status de terra da felicidade por grandes e pequenos cérebros refugiados no Sudeste e no Sul do país e também pelos que ficaram, Salvador (e, por metonímia, a Bahia) é obrigada a sê-lo. Caso contrário, todos se sentirão cruelmente enganados, como no episódio de greve da Polícia Militar – que se repete regularmente há pelo menos 20 anos.
O jornalista justifica seu título polêmico dizendo que vai com frequência à Bahia e que tem muitos amigos baianos que seriam ainda mais duros ao falar sobre Salvador. No entanto, apesar das boas intenções, ele não deixa de partir – se vamos ser duros – do princípio de que a cidade é um balneário que anda frustrando os turistas por não recebê-los bem como costumava. Um princípio que, para ser justa, está também em 90% da cobertura jornalística nacional sobre a greve.
O Estado da Bahia, de cujas regiões distintas vinham todos aqueles artistas e criativos citados no texto (confundir Salvador com a Bahia é também, há muito, parte da nossa história única), sofre realmente de uma fuga de talentos. Que não é necessariamente nova, se considerarmos que boa parte destes mesmos criativos conquistaram notoriedade fora de lá. E que é menos nova ainda se considerarmos que Gregório de Matos, no século 17, chamava Salvador, a Senhora Dona Bahia, de “nobre e opulenta cidade, madrasta dos Naturais, e dos Estrangeiros madre”.
Salvador também está, em termos, perdendo o bonde do desenvolvimento social e estrutural ancorados pelo crescimento econômico do Brasil, por causa do que parece ser uma excepcional má administração. Curiosamente, uma discussão similar sobre a perda de dinamismo de todo o Estado em relação ao país, entre outras mazelas da Bahia, foi travada nos anos 50 e chamada de “O enigma bahiano” pelo advogado Manoel Pinto de Aguiar, nascido em Alagoinhas.
A história única, que diz que o Estado é a terra da alegria, da criatividade, da maior festa popular do mundo, da beleza natural e também do ócio criativo é, em parte, o modo como muitos baianos querem ser vistos – seja por vaidade ou para fins lucrativos. E é também como os forasteiros de dentro do Brasil querem vê-lo.
Mas essa é só uma das histórias que temos, que nunca escondeu ou ofuscou realmente as outras. Talvez os empresários, marketeiros e outros grandes cérebros tenham mentido sobre a Bahia. Talvez todos tenhamos nos deixado enganar. Mas a Bahia não estava mentindo, nem Salvador. Ela sempre disse a verdade a nós que vivemos (e vivíamos) lá e que, por muito tempo, não fizemos nada a respeito.
E a Bahia também sempre se mostrou verdadeiramente – ontem e hoje – a todos os turistas, veranistas e Dimensteins que lá foram e vão com frequência. Com sua alegria, sua tristeza, seus horrores, seus absurdos, sua democracia espontânea e sua profunda exclusão, suas honestidades e desonestidades. Só não viu quem não quis.
Salvador, a principal representante da Bahia, mas não o seu resumo, não é uma mentira e não está moribunda, nem está “ainda” nem “quase” viva. Ela continua de pé e precisa da nossa ajuda. Nela, há maus cidadãos e bons cidadãos, maus administradores e bons administradores e muitos oportunistas. Há grevistas com razão e aqueles que perdem a razão. Salvador – e a Bahia – sempre foram melhores, piores, mais absurdas e mais incríveis do que gostamos de achar que elas são.
Histórias importam e muitas histórias importam mais, conclui Chimamanda Adichie no vídeo. Contar diversas histórias sobre a Bahia talvez ajude a enxergar a sua verdade, que está mais nos seus desafios e complexidades do que no idílio de um lugar que não pode ter problemas para não estragar o nosso verão.
Camilla Costa escreve às quintas-feiras
10 comentários
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fevereiro 9, 2012 3:58 pm às 15:58
aziz
orgulho dessa baiana!
fevereiro 10, 2012 12:59 am às 0:59
vulg
alguém como voce e como Dimenstein realmente “não ve se não quiser”. Mas o que dizer dos milhares, quiça milhões de soteropolitanos que por motivos óbvios de falta de percepão são levados por essa cultura de “capital da alegria” disseminada nos últimos 20 anos, tendo a axé music como trilha sonora oficial desse marketing turístico. Para esses, “a Bahia é massa”, “a Bahia é festa”, “a Bahia é putaria”. Experimente dar uma passada nos fins de semana nos bares e postos de gasolina dos bairros periféricos, pra ver se os que estão ali celebrando a “terra da putaria”, não conseguem ver porque não querem?
Pode ser difícil de ouvir, mas Salvador é sim uma mentira, com ou sem texto do Dimenstein.
fevereiro 10, 2012 11:01 am às 11:01
Nanda
vulg, essa percepção e “modus vivendi” q vc cita é uma das histórias da Bahia.
Por exemplo, não é difícil notar que muita gente nesta terra prefere ter seu fim de semana de folga do q ganhar uns parcos trocados a mais; entre um bom plano de saúde empresarial ou um bônus, tendem a valorizar o primeiro; e vários outros indícios de uma população q parece não se contaminar com o vírus workaholic tão facilmente.
fevereiro 10, 2012 1:05 am às 1:05
Camilla Costa
Acho que, sobre a percepção dos baianos sobre isso, Juliana Cunha tem uma boa teoria. Dê uma olhada: http://julianacunha.com/blog/2012/02/09/quem-mentiu-para-dimenstein/
fevereiro 10, 2012 4:02 am às 4:02
Marcus Gusmão
Ainda na fase embasbacado com o texto, fico impedido de comentar. Vou ler, como exercício de fixação, nas próximas quatro ou cinco semanas antes de ir ao Bomfim cultivar minha narraativa única.
fevereiro 10, 2012 11:30 am às 11:30
Camilla Costa
é que eu acho que a “não contaminação pelo vírus workaholic” é algo muito bom, na verdade.
fevereiro 10, 2012 11:39 am às 11:39
breno
Ja se sabe quem andou mentindo para Dimenstein. Ele, por motivos familiares, vem com frequencia a Bahia, e conhece e frequenta justamente a galera ligada a camarotes, axé music e a alguns destes publicitarios baianos famosos que vivem em Sampa. No texto ele fala mal de alguem ,não especificado, por ter criado uma imagem falsa de Salvador, depois passa uma vaselina e meio que se desculpa dizendo que eles, tipo Nizan, e outros do tipo, representam uma fuga de cerebros. Como se essa turma que cerca os familiares dele aqui na Bahia fosse representativa de todos os soteropolitanos. Não é. Que merda de veraneio em Itacimirim, hein Gilberto? Ter que aturar gente que no fundo voce despreza. Muda de turma
fevereiro 10, 2012 9:11 pm às 21:11
Katita
Bairrista é pouco. A gente (soteropolitanos e quase soteropolitanos) é muito megalomaníaco. Vamo’ combinar? Menos, minha gente, menos!
K.
fevereiro 14, 2012 11:48 am às 11:48
Ediney Santana
“que começaria na fuga de cérebros, “Fuga de cérebros? O que falta mesmo, senhor Dimenstein , é vergonha na cara da maioria dos jornalistas brasileiros,com algumas exceções ,covardes, pré-conceituosos, e formadores do lixo que graça em tudo que é canto que os senhores chamam de “opinião pública” ou seja a “verdade” que vocês criam.Não sou
fevereiro 20, 2012 6:02 pm às 18:02
Irena
É claro que a Bahia – e Salvador como sua principal representante – não é uma mentira e Dimenstein se valeu de uma frase de efeito, mas te digo que, morando aqui há 10 anos e sendo baiana que viveu no Rio desde recém nascida (até a volta pra cá) que tenho percebido um sentimento de derrota por parte das pessoas que, particularmente, considero as melhores pessoas (sem prejuízo das ótimas pessoas que desconheço). Um jogar de toalha com o pensamento cultural massificado, refém do modo coronel de governar e de ser (e não importa a legenda do partido). Há iniciativas bacanas, como o Movimento Desocupa Salvador, mas a coisa aqui anda complicada demais e o êxodo (até de pessoas que jamais imaginaria saindo de Salvador) tem chamado atenção. Abraços,