Numa tarde qualquer no Rio de Janeiro, João Cabral de Melo Neto, o poeta, conversa com Joel Silveira, o repórter. Joel percebe que já se passou mais de uma hora e João ainda não tomou sua aspirina. Estranha e o interpela. Ele explica que agora só toma o remédio de quatro em quatro horas, e não mais um atrás do outro, como antes. Mas persiste sofrendo de uma dor de cabeça crônica que o acompanha desde os 16 anos.
“Minha cabeças e partes vizinhas, incluindo a garganta, já foram fotografadas de todos os ângulos e esmiuçadas em todos os detalhes. Mas a dorzinha continua a resistir bravamente e a esconder dos médicos os motivos por que dói. E por que dói? Minha opinião é que se trata de uma dorzinha de fundo neurótico.”
O perfil está no imperdível livro “A milésima segunda noite da Avenida Paulista”, que reúne reportagens do sergipano Joel Silveira, um dos maiores jornalistas de todos os tempos. Mas voltemos a João. Numa tarde qualquer, estava vendo televisão quando peguei, pela metade, o documentário “Recife/Sevilha: João Cabral de Melo Neto”, destinado a contar sua morte e vida. Há uma cena em que o poeta diz que uma cegueira começa a escravizá-lo. Sua mão de velho treme no ar enquanto fala que não pode mais fazer quase nada sozinho, nem escrever, nem ler.
João perder os olhos me deu muito desespero, mas depois li um poema de Jorge Luis Borges, ele próprio acometido de cegueira progressiva, que me apaziguou. Tenho certeza que João, antes de morrer, também desfrutou uma forma qualquer de entendimento. Chama-se “Elogio da Sombra”. Um trecho:
Sempre em minha vida foram demasiadas as coisas;
Demócrito de Abdera arrancou os próprios olhos para pensar;
o tempo foi meu Demócrito.
Esta penumbra é lenta e não dói;
flui por um manso declive
e se parece à eternidade.
Meus amigos não têm rosto,
as mulheres são aquilo que foram há tantos anos,
as esquinas podem ser outras,
não há letras nas páginas dos livros.
Tudo isso deveria atemorizar-me,
mas é um deleite, um retorno.
Das gerações dos textos que há na terra
só terei lido uns poucos,
os que continuo lendo na memória,
lendo e transformando.
Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte
convergem os caminhos que me trouxeram
a meu secreto centro.
Esses caminhos foram ecos e passos,
mulheres, homens, agonias, ressurreições,
dias e noites,
entressonhos e sonhos,
cada ínfimo instante do ontem
e dos ontens do mundo,
a firme espada do dinamarquês e a lua do persa,
os atos dos mortos,
o compartilhado amor, as palavras,
Emerson e a neve e tantas coisas.
Agora posso esquecê-las. Chego a meu centro,
a minha álgebra e minha chave,
a meu espelho.
Breve saberei quem sou.
Tatiana Mendonça escreve às sextas
1 comentário
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junho 11, 2011 12:33 am às 0:33
glauberovsky
excelente!!!