No tempo antigo, antes dessas mudernage, Papai chamava ao pé de si o filhão crescidinho e dizia-lhe assim:

“Olhe, meu filho: pois você corte esse cabelo. E faça essa barba. Deixe de lado essas ideias de virar músico, meu filho – que dirá de ser cantor! Se forme advogado, ou administrador, e venha ser meu adjunto aqui. Você é o futuro de nossa empresa, de nosso império. É a continuidade de tudo o que construí durante toda a vida, meu filho.”

Aí o menino, vencido, aquiescia triste, tomava rumo e empreendia a vida toda sufocando a vocação de artista brilhante, seguindo os passos do pai, que lhe tornaria em ordinário burocrata.

Mas esse tempo ficou para trás. Romperam-se conceitos e barreiras, e as estruturas foram viradas do avesso. E tudo mudou, feito fosse a vida um imenso Carnaval.

Só não mudou a decadência, doença imune ao passo das décadas. Ainda mais nessa Bahia velha, que de anedota brota para mais de mil – e nenhuma, garanto, lorota.

Pois vejam vocês que hoje em dia, por aqui, Papai chama ao pé de si o filhão crescidinho e diz-lhe assim:

“Olhe, meu filho: pois você deixe esse cabelo crescer. E dê uma alongada nessa barba. Deixe de lado essas ideias de se formar advogado, meu filho, que dirá administrador! Vire músico, ou então cantor, e venha ser meu adjunto aqui. Você é o futuro de nossa empresa, de nosso império. É a continuidade de tudo o que construí durante toda a vida, meu filho.”

E o menino, vencido, aquiesce, toma rumo e empreende a vida toda sufocando a vocação de burocrata brilhante, seguindo os passos do pai, que lhe tornará em ordinário artista.

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Aliás, a propósito, a cena mais marcante do Carnaval de 2012 por essas bandas não foi, como se previa, o encontro entre Bell do Chiclete, num trio elétrico, e seus dois filhos, Oito7 e Nove4, no outro, na sexta-feira de Carnaval, na Praça Castro Alves.

Porque deu-se, isso sim, no domingo, quando Bell e sua numerosa prole, dessa vez num mesmo trio, pararam – e, junto com eles, a avenida inteira – para assistir à reprise, no Camarote da Band, do “emocionante” encontro familiar acontecido dois dias antes, na praça do poeta. Aspas para o adjetivo – mais brilhante impossível! – empregado pelo apresentador Betinho para a cena.

Já antevejo o futuro: ano que vem, imagens do carnaval de quinta serão reprisadas para os artistas, em pleno trio, já no sábado; e as de sexta, no domingo. Aí, na segunda, reprisarão a imagem de sábado, que por sua vez será a imagem do artista assistindo a reprise de quinta. Na terça, a mesma coisa: reprise da imagem de sexta, que reprisaram no domingo.

Aí a moda vai pegar, e daqui a alguns anos eles inovarão: reprisarão, desde o primeiro dia de folia, as imagens do carnaval do ano anterior, e do anterior ao anterior, e do anterior ao anterior do anterior. E então o Carnaval de Salvador cumprirá enfim seu destino, um sonho infeliz que persegue há quase 30 anos: tornar-se, de uma vez por todas, a eterna reprise de si mesmo.

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Outra digna de nota é a separação da histórica – da revolucionária, da memorável, da lendária! – banda Jammil e Uma Noites.

Jammil que, aliás, é dissidência de uma outra banda, a Jeremias. Tuca Fernandes e Mano Góes, que não eram donos da marca Jeremias, se desgarraram da banda para formar a Jammil – e a Jeremias seguiu em frente, decadente.

Agora, Tuca se separou da banda para seguir carreira solo – e a Jammil, com Mano Góes, segue em frente, decadente.

Já antevejo o futuro: daqui a alguns anos, Tuca brigará consigo próprio, e uma nova ruptura acontecerá. Ele se separará em “Tu” (dissidência de si próprio que fará carreira solo) e “Ca”, que seguirá em frente, decadente.

Como é natural em processos replicativos como esse – que a biologia chama de “blastulação” – haverá nova ruptura, e então faltarão letras para formar fonemas reconhecíveis pela gramática da língua portuguesa.

Mas “T” (a dissidência) e “U” (a decadência) farão mesmo assim o maior sucesso. Pois terá-se abatido sobre o circuito oficial do Carnaval um tempo sombrio de ogros e grunhidos.

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Alegre e alheio a isso, um outro Carnaval, bonito e tranquilo, colorido e fantasiado, ganha força e público animado no Pelourinho, no Santo Antônio Além do Carmo, na Mudança do Garcia e até mesmo no Rio Vermelho.

Há – ah, se há! – esperança.

Evoé!

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E o beijo-de-língua, aos pulinhos, do alcaide na segunda-dama, na folia do bloco, para as câmeras de TV? Quem é vivo viu: João trocou a pele de crente pela de folião – um verdadeiro Camaleão.

Ricardo Sangiovanni escreve aos domingos