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Lembro que uns entusiasmados ainda olhavam para o trio elétrico cinquenta metros adiante, quando o sereno cortejo apareceu. Sem cordas ou símbolos, os duzentos e poucos integrantes caminhavam e sorriam miúdo, vestidos do pescoço ao tornozelo. Entre eles, uma caminhonete com vidros pretos, engatando em sua carga de amplificadores marchinhas dos anos 30. Só que não havia nenhuma dança. Pareciam apenas se agradar, mostrar que a música serve para isso e pronto.

Lembro a hora em que o primeiro vendedor de água mineral apontou para o aglomerado e cutucou um vendedor de churrasquinho que cutucou um filho de Gandhi que cutucou a moça a se limpar. Qual é a dessa, velho, de onde surgiu isso aí. Foi a hora em que abandonei a cerveja no meio-fio, já meio alto, e cheguei perto de todos aqueles rostos do cortejo. Tive um carinho imediato, uma atração em seguir.

Lembro que acenei para eles, dancei com os indicadores voltados para cima. Cumprimentava com a cabeça todos os que me fitavam, os hostis, os indagadores, os velhos, as crianças e a moça da saia batendo o chão. Por ela, pelos traços dela de quem me vitimaria numa paixão de vinte mil horas se quisesse, saí da linha reta, pedi licença a dois e a peguei no braço. “Oi. Tudo bom?”. Ela escondeu os olhos, tímida. “Brasileira? Do you speak portuguese?”. Ela balançou a cabeça, mas ainda sorria e me deixava com toda a vontade.

Pelas mãos, eu a rodopiei, tentei mostrar novos passos para as marchinhas. Um círculo se abriu ao nosso redor e alguns ensaiaram imitar-me. Perguntei no ouvido da moça o que era aquele cortejo, por que seguiam daquele jeito. Ela indicou, em gesto largado, a caminhonete.  O que ela induzia com isso? Era “aonde o som for” ou “a resposta fica lá”? Ao me virar da direção apontada, a moça já havia cruzada a multidão.

Lembro que, curioso, bati no vidro preto da caminhonete preta, aproveitando uma passada mais lenta. Foi o instante em que uma mulher num abadá multicolorido, assim como o meu, ajoelhou-se no asfalto, em frente a um senhor grisalho da cruzada do cortejo, e gritou em descontrole: “Pai! Pai!”. Pulmões estacados, sobrancelhas quase nos cabelos, girei brusco para a caminhonete. O vidro, semiaberto. E na cabine com cheiro de poeira, um estofado de décadas, dois dados pendurados no retrovisor, o volante girava só.

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