Sonhei contigo esta noite e não gostei de ter sonhado, pois é o mesmo sonho pútrido de antes, vejo os líquidos e os tecidos esfolados de teus órgãos escorrerem pelo nariz, pelos ouvidos e pela tua boca, e teus ossos viram pó dentro de tua carcaça esvaziada, estou fantasiada de estrela, e me jogo faminta em cima de ti, e tento beber e mastigar os restos de tuas células, em desespero para que te revivas em mim, e quando acordo estou tão abatida e tão depressiva e meus músculos se entorpecem de tal forma, que, mesmo há meses sem ver teu rosto, imploro ao deus cuja existência duvido para esquecer o sonho, como se eu não soubesse como é impossível esquecer, os sonhos não somem, não existe um cemitério cinzento santo onde os sonhos podem se esconder, eles estão e sempre estarão impregnados em uma cadeia inatingível de neurônios tortos, abruptos e defeituosos, cujo funcionamento a ciência, burra, nunca irá decifrar, como tu sempre me dizias, e é preciso morrer para um sonho desaparecer, e eu não pretendo morrer ainda, pretendo viver, desde que seja do teu lado, contigo nu, sentado na beira da cama de nosso hotel enquanto eu massageio teus pés, enquanto eu beijo e sugo teus dedos ainda quentes do trânsito, enquanto eu corro a língua por tuas pernas, pelos teus joelhos até tua virilha, e tu me puxas os cabelos e me cospes e me dizes que não, teu pau eu não terei assim fácil, e eu ignoro, eu te mordo, te chupo e espero o teu corpo esporrar nervoso pela minha garganta, é simplesmente triste que não seja mais assim e eu não me canso de perguntar por que não?, por que não?, me diz, por que pedir é sempre pedir demais?, por que nunca me foi permitido saber de onde tu vens e por que continuo sem saber onde tu estás agora?, o silêncio é preferível à mentira, tu me responderias, como tantas vezes já me respondeu, e, tudo bem, um dia essa resposta poderá ser suficiente, um dia essa resposta pode se transformar em um mantra de conforto, mas hoje ainda não, hoje ela também me parece uma mentira, e eu sei bem demais o quanto tu me mentias, diariamente, constantemente, compulsivamente, não pense que nunca percebi, eu sempre soube e nunca te questionei, pois eu vivia com medo de tua resposta, de que tu me revelasses que eu na verdade não passo de um parque de diversões abandonado, eu vivia com medo, em pânico, do quanto tu me desprezarias caso eu te questionasse qualquer detalhe, mas agora tu desapareceste do mesmíssimo jeito, e eu não tenho ninguém a quem perguntar, os nossos amigos ficariam tão atônitos quanto eu, e me olhariam com o inferno dos olhos recheados de piedade, me transformei em uma viúva à força, e eu nem posso negar, pois nem sei se realmente sou uma ou não, é patético, eu, que do jornal lia no máximo a revista da tv, agora compro todo dia, na esperança de ler teu obituário, ou de ver tua foto na página policial, canso de ligar no Instituto Médico Legal, as enfermeiras do Hospital do Estado imploram para não me ver mais lá, meu coração acelera quando o interfone chama, pareço um clichê infeliz de novela, e tu bem sabes o quanto eu detesto novelas e o quanto eu detesto clichês, e então me vem esses pensamentos, esses sonhos, não sei bem o que fazer, continuar assim e serei até obrigada a sorrir novamente para meu marido.
Davi Boaventura narra cenas da vida privada, quinzenalmente, às segundas-feiras
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