Fato:

Em Salvador, no dia 21 de março de 1871, O Alabama noticiava: “Aguadeiras: soube que as africanas fizeram uma coligação?” O que o jornal abolicionista chamava de “coligação” foi nada menos que o boicote das aguadeiras do Terreiro de Jesus ao guarda do chafariz dessa região — um dos mais importantes postos de abastecimento da cidade — que “por antipatia” a elas exigira “mais um vintém” pela água derramada, além de proibir que “lavassem a cara ou que arrastassem os barris”.*

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Era uma terça-feira de março, e as notícias corriam devagar naqueles tempos. Ninguém estava sabendo que, no fim de semana, a França virara de ponta-cabeça com a instauração da Comuna de Paris. O bochicho no Terreiro de Jesus, área central da cidade de Salvador, tinha outra causa: um grupo de mulheres, todas elas negras, debatia acalarodamente sob a sombra de uma árvore. Cabaças e vasilhas a seus pés.

— Assim não pode, gente! Aquele mequetrefe tá abusando! — disse uma delas.

— Onde já se viu cobrar a mais pra completar a água que derrama de primeira? Queria ver ele subindo essas ladeiras com uma tina equilibrada na cabeça! — disse outra; depois, baixou a voz, falando mais para si: — Queria ver ele fazendo isso o dia todo, todo dia…

— Com tanta água nesse mundo, o certo era não cobrar nada. Inda mais da gente, que é pobre — falou uma terceira.

— Pior é ele proibir a gente de dar uma refrescada — reclamou uma quarta, abanando-se com uma das mãos e, com a outra, repuxando a blusa de algodão, que o suor lhe pegava ao corpo. — Fica achando que vida de aguadeira é moleza.

— É a gente que bota o de beber na casa das pessoas! — disse uma quinta, a mais afobada. — A gente não pode ser tratada assim! — gritou, encarando à distância o homem fardado, em pé ao lado da fonte. Este franziu o cenho e apertou o punho da espada na bainha. A moça cantarolou: — Ô ô ô ô ô, ou para a exploração, ou ninguém bebe em Salvador!

Dois cavalheiros que passavam pelo local, envergando ternos, chapéus-cocos e bengalas, pararam para observar a algazarra. Quando as amigas conseguiram conter aquela mais exaltada, esses comentaram em voz alta:

— Ora, ora, o que vejo ali senão uma pequena revolução do povo brasileiro! Deveríamos aderir?

— Certamente! Que importam a carestia e a bancarrota das contas públicas depois de tantos gastos com a Guerra do Paraguai? Que importa se um gabinete esteja caindo atrás do outro? Que importa, afinal, o abolicionismo? É preciso hidratar-se antes de tudo! Nossos interesses privados acima dos interesses coletivos!

— É por isso que esse país não vai pra frente!

As mulheres fizeram silêncio para escutá-los. Algumas sorriam, outras não.

— Ajuda nós, senhores! — clamou a primeira. — Fala com o guarda!

Foi a vez de os homens sorrirem.

— Deixem de patacoada e deem-se por satisfeitas que o soldado está só e que, portanto, não as pode ferir. Agora voltem ao trabalho! Não deixem seus senhores e clientes boquissecos, que o calor hoje está de matar.

Dito isso, tomaram o rumo da Praça da Sé, ansiosos por chegarem à Livraria Catilina e compartilharem com os amigos aquele descabido.

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Fato:

Inconformadas com essa situação, elas deliberaram, após reunião embaixo de “uma das árvores”, não mais comprar água naquele posto. Diante de tal posicionamento, o guarda se viu isolado e foi obrigado a “dar satisfação a cada uma de per si e presenteá-las com duas garrafas de vinho.”*

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*SCHUMAHER, Schuma.; BRAZIL, Érico Vital. Mulheres negras do Brasil. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2007. p. 42.

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Breno Fernandes escreve às terças