Escrevo ficção para jornal e ajudo a manter um blog de literatura, mas a minha profissão de carteira assinada é a de professor de filosofia. O que a princípio era só vida dupla começou a se misturar. Cheguei a fazer personagem com tiques de algum alemão e a escrever apostila com alma de conto, vide uma entrevista imaginária com Aristóteles que divertiu a moçada. Em piores momentos, já não sei o começo do professor e o fim do escritor ou mesmo o contrário. Alguns chegados põem os dedos entre as sobrancelhas e fecham os olhos: pronto, extrapolou-se! É verdade, meus caros, o cachimbo entorta mesmo o lábio e uma coisa cai para o olho de tanto se mexer na cabeça, mas juro que a filosofia mora também ali na literatura, embora jurar repita a circularidade de quem crê para quem vê, e que costuras teóricas parecem decidir narrativas tão quanto casamentos ou velórios.
Bom, gostaria de retroceder à origem do problema: quando fui me inscrever no vestibular. Na verdade interpretei mal o guia de candidato e achei que se precisasse saber inglês ou espanhol para o ingresso em Letras, a minha opção declarada. Tive pavor, quase não entendia da gramática nem de um, nem de outro, e pela proximidade da prova não imaginei um meio. Escapei então para a lista de cursos, na busca de algum que me interessasse e ainda permitisse o meu nível de estudos com horas a mais de livros e blogs do que módulos. O resto da história já se adivinha, a não ser pela sua metade: cheguei a deixar a faculdade, pois até me interessava por aqueles conceitos e teses, mas o meu negócio era mesmo ler e fazer literatura. Tratava-se do “meu destino” e do “sonho puro”: a ação que a plateia invisível esperava de mim. Ao me ouvir discursar dessa forma, um colega meu, mais experiente e um pouco mais palpável que os meus espectadores, deu-me alguns tapas no ombro com força maior que a simples camaradagem e me chamou à biblioteca.
Ele primeiro se dirigiu aos livros de Borges e abriu a antologia poética. Com a paciência de um carcereiro, pôs o polegar no poema sobre o rio de Heráclito e depois leu em voz alta outros versos que tratavam de Espinosa e de Schopenhauer. Quase me pôs na cara a sessão dos animais metafísicos em “O livro dos seres imaginários” e as considerações sobre Platão em “História da Eternidade”. Foi em Drummond, Bandeira e João Cabral me mostrar debates sobre a questão do ser. Leu frases aleatórias de “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann, explicou doutrinas de Hermann Hesse, tocou nas páginas de Balzac, de Dostoiévski, de Flaubert. Perguntou onde eu acreditava terem surgido os pressupostos do romantismo ou do naturalismo. Diante de minha mudez, o meu colega pediu uma pausa para o cigarro.
Na continuidade do passeio, ele pulou os exemplos óbvios de Voltaire, Sartre e Camus, e preferiu me dar na testa com um exemplar de “O guardador de rebanhos”. Apontou depois para “Angústia”, de Graciliano Ramos, para “A paixão segundo G. H.”, de Clarice Lispector, e lembrou as teses de Oswald de Andrade sobre antropofagia e as querelas marxistas nos romances de Jorge Amado. Lamentou não localizar algumas das frases de “Grande Sertão: veredas” que são relaborações de máximas de Pascal e de místicos medievais. E quando enfim me apoiei em uma prateleira, derrotado, o colega pousou a palma em meu ombro e falou: “Há homens, disse certa vez um professor meu, que vão da poesia à filosofia, outros que vão da filosofia à poesia. O inevitável é ir de um ao outro, nisto como em tudo”.
Outro momento para a memória foi o de um senhor do meu prédio, que me via receber alguns exemplares por correio. Em uma das subidas pela escada, ele me abordou e me pediu que eu lhe visitasse à noite. “Vou te mostrar como é que fazem uma boa história”, anunciou, para minha total desconfiança. Já que a curiosidade foi maior, segui ao local no horário. Entrei, pedi licença e me deparei com o senhor vestido de avental. “Venha me ajudar com o jantar”, disse ele, o que não tive jeito de retroceder. O senhor entrou na cozinha e continuou a picotar um tomate. Na pausa, pegou uma cebola do cesto e a colocou em cima da pia para que eu a descascasse totalmente. Obedeci entre o riso sufocado, a vontade de fugir ou qualquer sensação de estranhamento. Quando lhe mostrei a cebola reduzida a um gérmen branco, ele falou: “Viu todas essas camadas? Uma boa história é feita assim”.
Saulo Dourado escreve quinzenalmente às segundas
1 comentário
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fevereiro 18, 2013 7:23 am às 7:23
Breno Fernandes
Terror com dendê é sempre mais saboroso :)